“Medievalista” é o nome que damos àqueles entusiastas da Idade Média que fazem de tudo para reviver o período: LARP, feiras de época, banquetes medievais com direito a hidromel.
Também é o nome que damos aos historiadores especializados em Idade Média. Para esses medievalistas, o importante não é reviver o passado, mas desenvolver explicações científicas para o que aconteceu.
Na sua rotina, não há espaço para espadas, armaduras, pourpoints ou hidromel. Eles passam suas vidas lendo fontes, decifrando textos em latim, fazendo projetos de pesquisa e prestando contas à FAPESP.
Como medievalista do segundo grupo, nunca tive problema com os do primeiro (e admito que, na minha distante adolescência, já troquei espadadas em tardes de LARP.) Mesmo assim, não tenho como negar que nossas tribos raramente se misturam.
A não ser, é claro, que você esteja na cidade de Leeds, nos fundilhos de Yorkshire no norte de Inglaterra durante o International Medieval Congress.
O IMC Leeds, como é conhecido, é simplesmente o maior congresso de história medieval do mundo. Só esse ano foram nada menos que 2800 participantes de mais de 60 países.
Justamente por conta de seu tamanho, o congresso tem uma fama meio dúbia no meio acadêmico. Alguns acreditam que ele se esmera mais no espetáculo do que na qualidade da programação. Mesmo assim, o fato é que muito historiadores (como eu) pagam uma visita de quando em quando para mostrar a cara e saber o que está rolando.
É fato, também, que a feira medieval que armam anualmente — chamada de Make Leeds Medieval (“Faça Leeds Medieval”) pode ser só um espetáculo, mas é um espetáculo bem divertido.
Se deixar sua casa parecida com um castelo é uma ideia que te atrai, a feira de artesanato seria um paraíso para você. Make Leeds Medieval contou com todo tipo de bugiganga histórica a venda. Os produtos variavam de réplicas de joias medievais, baseadas em reconstruções arqueológicas, a instrumentos de época.
Porém, se você quiser voltar para casa com um alaúde, é bom economizar uma grana. Um mero ímã de geladeira na feira não saía por menos de £12. Que dirá um instrumento artesanal?
Felizmente, a festa contou com sua própria equipe de músicos, tocando peças típicas para a alegria dos visitantes.
O instrumento do meio lhe pareceu estranho? Ele é um hurdy-gurdy, espécie de sanfona que se toca girando uma manivela. Por incrível que pareça, alguns historiadores acreditam que ele deriva do violino – com que, de fato, carrega várias semelhanças.
O hurdy-gurdy foi tocado ao longo de toda a Idade Média e Moderna e já foi representado na obra de vários artistas, como o pintor holandês Hieronymus Bosch. Musicistas contemporâneos, como a cantora canadense Loreena McKennitt, mantém a tradição viva, usando o instrumento em suas composições.
Mas nem só de música se faz uma festa. E visitantes com um espírito aventureiro podiam ter seu dia de caçador, posando com uma ave de rapina.
O estande de falcoaria é algo que já tinha vista na minha última visita em 2014 e que me deixou bastante revoltado. Os pássaros pareciam bastante desconfortáveis debaixo do sol a pino, sobretudo as corujas, acostumadas a dormir de dia. Achei uma grande crueldade animal e me recusei a participar.
Pelo visto, eu não fui o único a reclamar. Nessa edição, as aves ganharam uma proteção extra contra o sol, embora pareçam tão tristes e estressadas quanto antes.
Falando em calor, medievalistas brasileiros ficarão surpresos ao saber que não havia hidromel a venda no festival. Isto talvez tenha a ver com uma política da própria universidade, cujo DCE tem um pub nos subsolos servindo bebidas alcoólicas durante todo o dia. Incluindo a Congress Ale, uma cerveja (meio sem sal) em celebração ao congresso.
Sim, você leu isso direito. Uma universidade tem seu próprio pub. Mostre isto ao seu reitor da próxima vez que ele encasquetar com uma cervejada durante uma festa no campus.
Porém, tanto aqui como na Inglaterra, não é para beber e ouvir música que as pessoas vão a feiras medievais. A Idade Média é estereotipada como uma época de violência, e é justamente o combate que atrai multidões.
Em Leeds, o show ficou por conta da Sociedade de Arqueologia do Combate do Royal Armouries, o maior museu de história militar do Reino Unido. Eles não são meros entusiastas (como eu em meus anos de LARP) mas arqueólogos, que também apresentaram um paper no primeiro dia de congresso.
Em meus tempos de moleque, ver uma apresentação como essa ao vivo seria um sonho realizado. De fato, estaria mentindo se dissesse que o espetáculo não me impressionou. Mas confesso que, quanto mais o tempo passa, mais esse tipo de entretenimento me incomoda.
Não falo aqui da atenção desmesurada que pontos relativamente pouco importantes da história militar recebem (saber manejar uma espada, no final das contas, era bem menos importante do que garantir uma rede logística). Ou o estigma de que a Idade Média foi a era da guerra e da fome, como se fossem Carlos Magno e Ricardo Coração de Leão os orquestradores do Holocausto ou Holodomor.
A imagem de “Idade Média” que esses shows promovem, com seus cavaleiros prateados munidos de espadas longas e alabardas, só surgiu na história humana no final do século XV. Para todos os fins, ela diz mais respeito à Renascença e modernidade que aos mil anos de história que sucederam o fim do Império Romano.
Não é um problema exclusivo de reenactors. De obras clássicos como Excalibur a hits recentes como Game of Thrones e The Witcher, a Idade Média “clássica” com que sonhamos parece ser aquela do instante de seu fim. Que até games orgulhosos de sua pesquisa histórica como Kingdom Come: Deliverance escolheram o século XV para situar-se mostra quão arraigado é esse retrato.
Na cultura popular, a Renascença engoliu a Idade Média.
Isso não é uma crítica direta ao festival de Leeds, que procedeu melhor do que muita gente. Em primeiro lugar porque, ao contrário de outros reenactors, eles têm um motivo muito bom para sonhar com o século XV.
Leeds fica em Yorkshire, um dos epicentros da Guerra das Rosas (1455-1487), um dos maiores conflitos da história da Inglaterra. E, em particular, o palco da Batalha de Towton, um dos enfrentamentos mais sangrentos que o país já sofreu.
Em segundo porque o festival deu conta do recado. A feira contou com expositores inusitados, como um revivalista vestido de sogdiano, uma antiga civilização no que é hoje Irã, Uzbequistão e Tajiquistão.
E também uma segunda apresentação de combate, lutando com armas e armaduras da época tardo-romana. Nas palavras dos próprios guerreiros, um show para mostrar de onde os cavaleiros do Rei Arthur vieram, e outro para quando eles aposentaram as esporas.
E por falar em Rei Arthur, é evidente que que o personagem mais icônico das fábulas “medievalistas” daria as caras:
Dragões soltando fumaça pelas ventas é o exato tipo de coisa que deixa alguns historiadores de cabelos em pé com o IMC. Mas não dá para negar que eles (e todo o festival) cumpriram um papel.
Quando a apresentação de combate acabou, vi um garotinho de pouco mais de cinco anos correr de encontro a um dos guerreiros. Ele chorou e se esperneou, dizendo que não queria ir embora. Seus pais só o levaram depois de tirar várias fotos com os dois apresentadores.
Sim, não é a coisa mais científica de todos. Mas talvez instigar essa curiosidade no coração de uma criança já dê conta do recado. São as novas gerações, afinal de contas, que pesquisarão a história do futuro.
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