Cardcaptor Sakura está de volta após vinte anos. Aos fãs, o momento é de celebração. Contudo, embora a série esteja longe de decepcionar, nem todo mundo a recebeu de braços abertos.
Isso, por si só, não é uma surpresa. De Sailor Moon Crystal a Dragon Ball Super e Digimon Tri, revivals, reboots e remakes de séries clássicas têm enfrentado sua dose de desafetos.
Clear Card, no entanto, parece ter motivado críticas de outra natureza. Para alguns, a série cumpre seus objetivos bem demais, evocando uma utopia infantil de que seus fãs originais (hoje adultos) se sentem distante.
Sakura pode estar na sexta série, apenas um ano mais velha que a heroína cujas aventuras assistíamos em TVs de tubo em 4:3. Para os espectadores, no entanto, foram vinte longos que não voltarão – nem trarão de volta a inocência que perdemos pelo caminho.
Seriam as garotas mágicas incompatíveis com o mundo adulto? Em uma era pós-Madoka, há espaço para collants e varinhas em uma rotina com filhos e imposto a declarar?
Para a alegria dos fãs de Sakura — e também de seus críticos desiludidos — eles não foram os primeiros a fazer essas perguntas.
Quando as garotas mágicas envelhecem
Magic (old) Girl Fairytale Kururu nos mostra, de uma maneira descompromissada, o que seria da Sakura se envelhecesse como nós.
Escrito por Akira Kojima, o one-shot nos apresenta a uma garota que aceitou o manto de guerreira amor e da justiça… e perdeu o momento de parar.
Aos dez anos, Kururu foi escolhida por Cosmos, o espírito celestial, para proteger a terra dos espíritos noturnos. Vinte anos depois, Kururu se transformou em uma balzaquiana; Cosmos, em um familiar senil; os espíritos noturnos, em um trabalho menial.
Presa às obrigações de heroína, a jovem mulher vive uma vida solitária, trocando o dia pela noite e dividindo apartamento com uma amiga solteirona.
O one-shot de Kojima é um retrato bem-humorado do nonsense intrínseco às garotas mágicas, imperceptível a meninas de dez anos, mas inevitável a adultos.
Forçada a dormir durante o dia para se recuperar das “batalhas”, Kururu adota uma rotina de NEET. De fato, não é difícil interpretar o mangá como uma alfinetada contra os próprios otakus, felizes em importar à maturidade um ideal juvenil de sucesso. Em alguns casos, em detrimento daquilo que a idade traz de bom, como a independência financeira e a vida sexual.
É um conflito parecido ao explorado em Complex Age, saga de uma cosplayer de 26 anos obcecada em representar uma mahou shoujo.
Embora não seja “mágica” em nenhum critério do termo, sua protagonista busca no “2D” um ideal de perfeição que a vida normal não lhe traz.
Para Nagisa, protagonista do mangá, a mahou shoujo é uma máscara que pode – e, segundo alguns, deve – remover. No entanto, que Kururu, a garota mágica de Kojima, decida insistir na “profissão”, tirando um prazer dissimulado de sua própria sina, é sinal de que a escolha é mais difícil do que parece.
Se Kojima tivesse investido em sua fábula para além de um (curtíssimo) one-shot, suas consequências morais poderiam receber a atenção que mereciam.
Felizmente, o báculo foi tomado por outros criadores. E o resultado é uma das obras mais divertidas, tocantes e inesperadas a agraciar o gênero.
Bewitched Agnes
Okusama wa Mahou Shoujo (“Minha esposa é uma garota mágica”) é a resposta mais famosa à pergunta que abre esse post.
Seu título em inglês, Bewitched Agnes, é uma referência à inspiração de todas as mahou shoujo: o seriado A Feiticeira, transmitido nos Estados Unidos de 1964 a 1972.
Tal como na série que o inspirou, Bewitched Agnes explora as dificuldades em conciliar uma vida conjugal com a bênção duvidosa de poderes mágicos.
Que o anime tome o “partido” de uma adulta é evidente na própria heroína. Agnes é uma referência a Agnes Moorehead (1900-1974), atriz que interpretou não a feiticeira Samantha, mas sua mãe, Endora, no clássico da TV americana.
Okusama wa Mahou Shoujo traz esses conflitos à fórmula das mahou shoujo que tão bem conhecemos.
Agnes é uma garota mágica de 26 anos, casada com um famoso escritor. Como parte do preço para obter seus poderes, a heroína foi proibida de beijar outras pessoas. Com o tempo, a condição força os limites de seu casamento e os impele a se separar.
Sua vida, porém, é virada de ponta cabeça quando um jovem rapaz se hospeda na pensão em que trabalha. Agnes sente seus desejos se reacenderem – e, com eles, as angústias de uma vida que lhe foi proibida.
Seus problemas não param por aí. Seus “chefes” ordenam que se aposente e enviam uma nova heroína para usurpar seu manto: Sayaka Kunerai, AKA “Cruje”, que divide a aparência, o gênio e o próprio nome com a melhor amiga de Madoka.
Bewitched Agnes possui todos os elementos de uma comédia. Contrariando as expectativas, a série na verdade é um melodrama, que uma trilha de Kenji Kondo (compositor da série Zelda) só torna mais comovente.
Sua trama, logo percebemos, é uma exploração das angústias de uma mulher que entende que a juventude – e suas infinitas possibilidades – não estarão ali para sempre.
O próprio fanservice, que em outras séries pareceria arbitrário, age como metáfora do redescobrimento de sua própria sexualidade e de suas inseguranças para com uma rival com a metade de seus anos.
Seu conflito evoca Kururu do mangá de Kojima, que se deixou virar uma virgem de 30 anos por não ter tempo para namorar. Se a heroína do one-shot abraçou o celibato de seus sonhos juvenis, para Agnes essa infantilização é impossível. Não apenas sua mente, mas também seu corpo anseia pela maturidade.
A genialidade do anime não está (apenas) em trazer isso à tona. Com uma narrativa despretensiosa e uma paleta de cores brilhante, Bewitched Agnes escancara a essência das garotas mágicas de uma forma que nem Madoka fez igual.
O poder de mudar o mundo
As garotas mágicas do anime não são as guerreiras com que estamos acostumados.
O conselho que as comanda é menos um Reino da Lua que uma versão cor-de-rosa de Cidade Sombria, resetando periodicamente a realidade por motivos que nunca ficam claros.
Suas mahou shoujo são verdadeiras deusas, no estilo de Madoka ou Haruhi Suzumiya, com o poder de moldar tudo aquilo que existe aos seus desejos. Wonderland, onde se passa o anime, não é uma cidade real, mas uma criação da própria Agnes, herdada de sua mãe e de todas as garotas mágicas que vieram antes.
Toda mahou shoujo que recebe o manto tem o dever de destruir a cidade de sua predecessora. E criar uma nova Terra do Nunca afinada à sua imaginação.
Não é difícil ver no enredo uma metáfora às próprias garotas mágicas – e à mídia do anime como um todo. Tal como estas séries atendem nossa demanda por heroínas inspiradoras, também seu mundo fictício se molda às demandas destas heroínas, dobrando-se para ajudá-las a brilhar.
Em alguns momentos, a alfinetada chega a ser cáustica. Quando Cruje sente vontade de ir ao um parque de diversões, ela resolve criar um do zero. O episódio lembra a conveniência de tantos animes, em que uma roda gigante – ou uma praia, um vilão, um rapaz bonito, uma vitória – estão sempre a uma esquina de distância.
O Silver Millenium funciona porque é um grande Show de Truman.
O problema é que as demandas de uma jovem não são as mesmos de uma mulher adulta. E a diferença entre uma prisão e uma utopia, muitas vezes, está em quem segura as chaves.
Agnes hesita em passar o bastão porque não quer que seu mundo, em que vive e que aprendeu a amar, desapareça. Cruje, sua sucessora, tem pouca paciência para isto. Os jovens não são obrigados a sofrer sob as tradições adultas. Eles têm o poder – e o dever – de batalhar por um futuro diferente.
Mahou shoujo são muitas vezes histórias de formação. Por meio da linguagem didática de feitiços, transformações e familiares, suas heroínas crescem, descobrem a si mesmas, tornam-se independentes e encontram uma voz própria.
Qual é o fim desse processo? Qual é o momento em que damos a volta e descobrimos, como numa velha canção do Jacques Brel, que nos tornamos os adultos opressores que tanto combatíamos?
Bewitched Agnes nos traz esse momento. A virada, para suas garotas mágicas, não é uma luta abstrata contra o establishment, mas uma realização pessoal.
Todos somos iconoclastas até o dia em que criamos algo de que nos orgulhamos. Quando tudo o que temos é o futuro, não pensamos nada de apagar o mundo com um estalo. A partir do momento em que deixamos algo para trás – uma obra, um ideal, um direito, um outro ser humano – podemos enfim abandonar o báculo.
Vinicius tenho prazer e orgulho de acompanhar seu blog.
Invejo e admiro sua escrita, e ler seus textos me dao um sentimento de amuderecimento incrivel, me faz refletir sobre a vida e me orgulhar de ser fã dessa midia.
O Ultimo paragrafo foi matador e me atingiu em cheio, posso dizer, como um inconoclasta, um inaquedado, um revolucionario, e pai de outro ser humano… me doi o fato de ainda buscar ansiosamente o baculo, (que daria sentindo a uma vida marcada por uma juventude perdida e por um corpo e mente que ainda nao amadureceu, por se incorformar com a capitulacao e mesquinharia da vida adulta,) quando eu hoje deveria estar o abandonando.
Cara por favor continue escrevendo
Caro Jake, muitíssimo obrigado pelo comentário! É por (e para) leitores como você que esse blog existe.
Eu não sei a resposta para essas questões – aliás, sequer sei se elas têm uma resposta. É algo que me intriga também e que me motiva a escrever esses textos. Fico feliz de saber que não sou o único que pensa sobre essas coisas!