O geek dominou a cultura. Filmes de super-herói, antes debochados, são louvados como obras-primas do cinema. Campeonatos de e-sport disputam espaço com as modalidades tradicionais. Convenções como a CCXP agregam todo tipo de artista, de fanzineiros das antigas a celebridades que nunca abriram um gibi um vida.
Não foi uma conquista sem baixas, e muitos têm se perguntado se o resultado valeu a pena.
Faz sentido falar em “nerds” em um mundo em que todos se incluem na categoria? O que heróis com superpoderes, rip-offs de Game of Thrones, cash-grabs de animes e o culto às “referências” diz sobre nossa cultura, quando é a praticamente tudo o que produz?
Em um mundo assim geekificado, em que o mergulho em qualquer franquia está ao alcance de uma wiki, o que raios significa ser um “nerd”?
Aqueles que vivem nessa cultura talvez não saibam, mas essa é uma pergunta que já tem quase vinte anos. Desde a virada do milênio, não foram poucos os autores que refletiram sobre esse novo modo de vida.
Não falo em escritores “nerds” como Ernest Cline, George R.R. Martin ou J. K. Rowling, que lotam convenções e inspiram cosplays. Mas em autores – dos mais variados estilos e gêneros – que se propuseram a escrever sobre nerds.
E, por meio deles, entender o que raios se passa com a nossa época.
1) Densha Otoko
Dos livros dessa lista, Densha Otoko (O Homem do Trem) é aquele que sucedeu em se tornar, ele próprio, um fenômeno da cultura pop. O “romance” – se é que pode ser chamado assim– foi adaptado a mangá e dorama e traduzido ao redor do mundo.
O livro conta a história de um rapaz introvertido que, um dia, protege uma mulher de um bêbado no trem. Do seu ato de heroísmo nasce uma paixão improvável. Virgem, recluso e viciado em doujins, o homem do trem se vê diante de um desafio maior que intimidar tarados: dar os primeiros passos em um relacionamento de verdade.
O romance é notável menos pelo conteúdo que pelo seu formato. Para início de conversa, não se trata de uma obra de ficção, muito menos de um “livro” stritu sensu. Densha Otoko é uma compilação de mensagens trocadas no fórum japonês 2channel (o famoso 2ch).
Trem, como nosso protagonista é chamado, é um otaku real. Apavorado com o início do namoro, decide pedir ajuda aos únicos amigos que têm: outros otakus solitários dos fundilhos do 2ch.
Desse coaching improvável nasceu uma história de amor verídica, salpicada por desabafos, celebrações e doses cavalares de kaomojis, os emoticons orientais feitos de sinais ASCII.
Seu “autor”, Nakano Hitori, é um nome fantasia para naka no hito (“Um de Nós”), internauta anônimo que acompanhou a conversa e a editou de maneira inteligível.
Lido nos dias de hoje, Densha Otoko é menos o retrato de uma subcultura que uma viagem no tempo. A linguagem do 2ch, com sua etiqueta e vocabulários próprios, soa estranha a uma geração em que a nerdice já se libertou do anonimato.
Sua própria definição de “otaku” bate em teclas que, no Ocidente, já foram reviradas. O Homem do Trem é um outcast social, que encara seus gostos como um vício a ser superado.
Esse sentido é conforme à acepção corrente no próprio Japão, em que “otakus” são fissurados (não necessariamente em animes) cuja devoção ultrapassa os limites da salubridade.
Mesmo assim, em uma época em que o premiê japonês se veste de Mário e Tóquio é governada por uma cosplayer, é chocante ver Sailor Moon e Pretty Cure descritos como sintomas de doença.
A nerdice, para naka no hito (e a horda de otakus que representa), é uma fase a ser superada. Uma cópia pálida do mundo real criada por aqueles incapazes de curti-lo.
Trem joga fora suas figures como um viciado a um estoque de drogas. Hermès (como sua musa é chamada) surge para salvá-lo da pornografia, “curando-o” dos doujins. Seus colegas de fórum são menos amigos que companheiros de cárcere, apreciando sua companhia, mas também felizes de vê-lo partir.
564 Nome: Anônimo postado em 18/03/04 11:53
>> 562
Cara, esse sou eu.
Estava me divertindo acompanhando o tópico, mas este não é mais lugar prum nerd legítimo. Na verdade, acabou se transformando num tópico no qual o cara legal e a garota são resgatados dessa profunda existência miserável.
Do Ocidente, é difícil não vê-la como uma obra datada, a despeito de sua pertinência em seu Japão natal e em seu uso inventivo da língua. Para entender o “nerd” em nosso próprio entorno, é preciso buscar em outro lugar.
2) A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao
Se Densha Otoko se tornou um fenômeno pop, A Incrível Vida Breve de Oscar Wao, de Junot Díaz, levou o geek à torre de marfim. A obra venceu o prêmio Pullitzer, inspirou estudos e chegou a ser considerada o romance mais importante do século XXI.
Seu herói improvável é Oscar de León (aos amigos, Oscar Wao), um nerd recluso que se sentiria em casa entre os otakus de Densha Otoko. Obeso, negro e de ascendência dominicana, ele tica todos os critérios de um outsider vivendo na periferia de Nova Jersey.
Inconfundivelmente estrangeiro para os americanos, ele é também um estranho a seus compatriotas. Contra a masculinidade exacerbada dos dominicanos, Oscar é virgem, tímido e delicado. Enquanto que seus conterrâneos falam o inglês picotado dos imigrantes, Oscar é letrado e erudito.
Poderia ser a premissa de uma versão latina de Big Bang Theory. Díaz, no entanto, transforma sua fábula em um épico sobre a história da República Dominicana no século XX.
Para isso, ele tece uma trama improvável, amarrando referências a quadrinhos e ficção científica ao realismo fantástico da literatura latina. A ambição é anunciada desde a epígrafe, que mistura uma citação de Galactus junto a versos de Derek Walcott, um dos maiores nomes da poesia caribenha.
Oscar é um geek que “veste sua nerdice como um Jedi porta um sabre-de-luz”, “sabe mais sobre o Universo Marvel que Stan Lee” e que “Não se passaria por Normal mesmo se tentasse.” Sua história, contudo, é narrada por nativos de um outro mundo: seus colegas dominicanos, divididos entre Nova Jersey e Santo Domingo tal como Oscar entre a realidade e o escapismo.
Oscar é filho de imigrantes fugidos da ditadura de Rafael Trujillo, um dos ditadores mais sanguinolentos da América Latina. Sua família pensa ter escapado do pior, mas o tirano terá a última risada.
A crueldade do Trujillato é tamanha que não pode ser sofrida por apenas uma pessoa. Sua família é alvo de um fukú, mistura de maldição caribenha com espírito maligno que persegue cada geração e leva-a à desgraça.
O romance é entremeado por espanglês, a mistura de espanhol e inglês falada por imigrantes latinos nos EUA. O próprio nome de guerra de seu protagonista (Oscar Wao) é uma corrupção espanholada de “Oscar Wilde”.
Díaz pinta um retrato do nerd lisonjeiro aos que se identificam com o termo. A nerdice, em seu livro, é uma expressão da marginalidade. Uma cultura sem vínculos, sem pátria e sem glamour em que deslocados, exilados e caretas podem se encontrar.
Uma cultura, no entanto, que só existe em função do que há por fora. Díaz não está interessado na nerdice pela nerdice, como tantos que vestem o rótulo. Oscar, para ele, é uma ferramenta para entender as vítimas do Trujillato – e os sobreviventes de tiranias de uma forma geral.
Uma tragédia tão insana, com sequelas tão amargas, que não pode ser contada de outra forma. Como ele disse em uma entrevista:
“Ninguém pode escrever um romance político straightforward sobre o Trujillato e capturar seu poder fantasmagórico. Esta é outra razão pela qual eu tive de virar um nerd hard-core. Porque sem maldições e mangustos alienígenas e Sauron e Darkseid o Trujillato não pode ser compreendido, elude nossas mentes “modernas”. Nós precisamos dessas lentes da ficção, do contrário não conseguimos ver.”
O fúku que guia Oscar ao seu destino é a expressão de uma maldição maior, de que ser humano nenhum é capaz de fugir. A história.
3) As Incríveis Aventuras de Kavalier e Clay
É justamente a história o tema do precedessor de Díaz – e um dos primeiros grandes livros a trazer a nerdice à ficção literária.
Escrito por Michael Chabon em 2000, As Incríveis Aventuras de Kavalier e Clay foi um marco tanto para os romances quanto para os quadrinhos. Uma celebração do nascimento dos super-heróis e de sua importância para a cultura.
Josef Kavalier é um judeu checo que sonha seguir os passos de Houdini, o lendário escapista do início do século. Quando seu país é ocupado pelos nazistas, porém, o jovem é forçado a uma escapada de outra natureza.
Josef foge aos Estados Unidos para viver com seu primo, Samuel Clay. “Sam” é um aspirante a desenhista interessado nos recém-criados super-heróis. “Joe”, por sua vez, tem um herói à espera de uma pena: O Escapista, uma mary sue de si mesmo, capaz de invadir o Terceiro Reich de assalto e resgatar sua família.
Juntos, eles se tornam dois dos pioneiros da Era de Ouro dos quadrinhos americanos. Da agruras de dois primos deslocados nasce o germe da cultura nerd.
Vencedor do prêmio Pullitzer, Kavalier & Clay chegou a inspirar seu próprio quadrinho, baseado nas personagens – e no estilo – criados por seus heróis.
O romance é uma defesa apaixonada do escapismo, que as pressões materialistas e os críticos da “alienação” ainda hoje insistem em condenar.
Para Joe, que assistia impotente à ascensão do Terceiro Reich, os quadrinhos eram o campo de batalha de que a vida lhe privara. Ao desenhar panzers destruídos, heinkels em chamas e soldados da Wehrmacht voando pelos ares, ele se aliviava da certeza de que, no início dos anos 1940, a Alemanha Nazista era um império imbatível.
Sam Clay, seu parceiro, travava uma luta de outra natureza. Gay em uma época em que homossexualidade era crime, ele se voltou aos quadrinhos para consumar fantasias proibidas.
Na sua pena, sidekicks como Bucky e Robin se tornam as máscaras de seus desejos. Sob o “armário” de vínculos paternais, Clay esconde romances homoafetivos.
Em suas revistas toscas, mal desenhadas, impressas em papel jornal, Joe e Sam encontram uma liberação que o mundo real é incapaz de prover. Um universo paralelo, simplista, mentiroso e irreal, mas de que a vida nua e crua dependia para se sustentar.
Ele sabia que não estava sendo razoável. Mas, por um ano agora, a falta de razão – a perseguição firme e esgotante de uma guerra de mentira contra inimigos que ele não podia derrotar, por meios que nunca poderiam dar certo – o havia oferecido a única possibilidade de salvação da sua sanidade. Que as pessoas cujas famílias não estivessem sendo mantidas prisioneiras fossem razoáveis.
Chabon, no entanto, não é um simples apologista. Seu livro é um retrato do poder fantasia, mas também de seu potencial para arruinar uma pessoa – ou uma sociedade.
Enfurecido com a relutância dos EUA em se unir aos Aliados, Joe decide fazer a justiça com as próprias mãos. O cartunista se torna ele próprio um vigilante, caçando nazistas nos becos de Nova York.
Em uma de suas patrulhas, depara-se com o esconderijo da Liga Ariana da América. O que encontra no seu interior, no entanto, faz seu queixo cair: todas as edições de sua HQ, O Escapista.
De um inimigo, Joe fizera um fã.
“Então, abruptamente, foi sua vez de se sentir envergonhado, não só por ter estendido, conquanto momentaneamente, a consideração da sua simpatia a um nazista, mas por ter produzido trabalho que agradava a tal homem. Joe Kavalier não foi o único dos pioneiros dos quadrinhos a perceber a imagem refletida do fascismo inerente no seu super-homem anti-fascista – Will Eisner, outro judeu quadrinista, deliberadamente vestiu Blackhawks, seu herói dos Aliados, em uniformes modelados nas elegantes roupas com a cabeça da morte da Waffen-SS. Mas Joe foi talvez o primeiro a sentir a vergonha de glorificar, em nome da democracia e liberdade, a brutalidade vingativa de um homem muito forte. (…) Agora ocorria a Joe pensar se tudo o que eles haviam feito, desde o começo, não era ceder aos seus piores impulsos e fomentar a criação de uma nova geração de homens que veneravam a força e a dominação.”
A epifania de Joe é um alerta ao mundo nerd como um todo. De todas as mídias “geeks”, as HQs de heróis sempre foram as mais abertamente panfletárias.
Aqueles que acusam gibis de comprarem pautas “engajadas” se esquecem de que a política – na sua forma mais chula e simplória – sempre foi o soro do super soldado que alimentou suas canetas.
Porém, ao adaptar questões complexas ao binarismo dos anos 1940, esses gibis instigam o mesmo fanatismo que abasteceu os desmandos da Segunda Guerra. E inspiram radicais como o “fã” nazista de Joe, que perpetuam a violência sob novas bandeiras.
Em uma época em que filmes de heróis são louvados como bússola moral, essa é uma advertência que “nerds” deveriam escutar com atenção.
Conclusão: uma terceira linguagem?
Um hobby patético de ratos de porão? Um prisma fantasioso para entender os absurdos da vida? Uma fantasia de poder, que pode nos aliviar, mas também nos destruir?
Lendo os três livros lado a lado, é difícil escapar à constatação de que o “nerd”, para esses autores, trazem mensagens bem diferentes. A ilusão de um mundo nerd unificado, vendida por convenções e lojas de camisa, pode ser mais efêmera do que parece.
Ou seria mesmo?
A pista quem nos dá é Junot Díaz. Ao comentar a prevalência de referências pop em seu romance, o escritor disse encará-las não só como conteúdo, mas como uma terceira língua ao lado do inglês e espanhol:
Eu diria que [a ficção científica e a fantasia] são uma terceira linguagem para nosso momento cultural. Desde sua consolidação como gênero, o SF [sci-fi] nos ajudou a administrar os deslocamentos e confusões e fantasias de “progresso” e certamente nos ajudou a ler o presente de formas que são indispensáveis. Eu mesmo estaria perdido sem meus óculos de SF.
A cultura pop pode ter nascido de orcs e tie fighters, waifus e mutantes, mas não precisa se limitar a eles. Ao contrário da profusão de livros, séries e jogos que veneram a nostalgia como um fim em si, Díaz e Chabon encontraram nelas um caminho para coisas maiores.
Um guarda-roupa encantado com o de C.S Lewis, que nos leva não à um mundo mágico de faz-de-conta, mas a um lugar mais interessante. A absurda, indescritível, às vezes alegre, às vezes trágica experiência humana.
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