Literatura e cinema tem uma afinidade bastante conhecida. Desde os primórdios da sétima arte, foram dos livros que tiraram suas maiores inspirações – e aos livros que recorreram para construir seus universos expandidos.

Estudiosos de cinema, no entanto, sabem que livros possuem uma afinidade parecida com outra mídia: a TV. Com sua longa duração e capacidade de lidar com tramas paralelas, a série é um veículo ideal para destrinchar romances complexos.

A Era de Ouro da TV americana, em sua encarnação streaming, parece ter aprendido a lição. De Philip K. Dick a Margaret Atwood, não são poucos os grandes da literatura que se viram adaptados (com propriedade) à telinha.

Com Carbono Alterado, a Netflix acrescenta à sua grade uma das histórias mais eletrizantes (e cinematográficas) de seu gênero.

Romance de estreia de Richard Morgan, Carbono Alterado nos leva a um futuro quase irreconhecível.  Avanços na tecnologia permitiram isolar a consciência de uma pessoa e transferi-la a outros corpos. Pagando o preço apropriado, qualquer um pode comprar ou clonar um novo corpo – ou “manga” – e viver indefinidamente.

A morte, antes um destino inexorável, se tornou exclusiva dos marginalizados.

Não demora para que a tecnologia transforme irreversivelmente a sociedade humana. Prisões são substituídas pelo sequestro de corpos. Quando um criminoso é condenado, sua consequência é armazenada em um banco de dados e seu corpo é oferecido como manga a quem se dispuser a pagar. Ao final de sua pena (que pode durar séculos), ele terá de se contentar com o corpo de outrem, ou gastar fortunas em mangas sintéticas.

Na outra ponta da pirâmide social, milionários, políticos e outros influentes colecionam mangas. Socialites trocam de rosto com o passar das modas. Homens de negócios criam doppelgangers em países (ou planetas) diferentes, para não perderem tempo em viagem.

O sonho pós-humano, herdado da cibernética, parece ter se tornado uma realidade. O ser humano, finalmente, aprendeu a se libertar de seu corpo.

Para alguns, no entanto, a benção não é uma escolha. Soldados são “uploadados” onde quer que a guerra os chame, em corpos geneticamente modificados para não sentir dor ou empatia.

Carbono Alternado nos apresenta esse futuro sob os olhos de Takeshi Kovacs, ex-membro de uma tropa de elite das forças armadas conhecida como Os Emissários. Preso durante um serviço como mercenário, ele é trazido de volta à vida para desempenhar um serviço ao milionário chamado Laurens Bancroft.

Sua missão? Descobrir quem o matou.

Uma das mangas de Bancroft foi misteriosamente executada dentro de sua mansão. Vivo há mais de três séculos, com um verdadeiro armário de corpos sobressalentes, o milionário não se assusta com a morte. Por orgulho, no entanto, deseja passar a limpo o atentado contra sua pessoa.

Na medida em que investiga o caso, contudo, Kovacs se enxerga perdido em uma conspiração envolvendo as altas cúpulas da ONU, o submundo da prostituição e uma figura misteriosa de seu próprio passado.

Do noir ao cyberpunk

Joel Kinnaman como Takeshi Kovacs na adaptação da Netflix

Carbono Alternado trará flashbacks aos habituados ao neo-noir hardboiled. Seu protagonista meandra por becos escuros povoados por traficantes e prostitutas, entrelaçados pelas maquinações do crime organizado.

A policial Kristin Ortega, a mercenária Trepp e Miriam Bancroft, mulher de seu cliente, interpretam as obrigatórias femmes fatales, afogando o protagonista com tensão sexual – em um dos casos, literalmente.

Os clichés não passam despercebidos ao próprio autor. Em um exemplo de ironia metanarrativa, Kovacs é transferido ao corpo de um fumante compulsivo. Contra sua vontade, é obrigado a enfrentar o crime com um cigarro entre os lábios, evocando as tomadas fumacentas do cinema noir.

Philip Marlowe, um dos mais famosos personagens do cinema noir

Morgan imita até mesmo a linguagem visual que fez de Raymond Chandler, mestre do estilo, um ícone literário. Um robô ri “como um gordo afogando em melaço”. O condicionamento de Kovacs o acomete como um “vôo baixo de caças de ataque, desenhando mentiras de fumaça de combustível”. A imagem de um companheiro morto o assombra “como um familiar demoníaco irrequieto”.

Os tributos ao cyberpunk não são menos evidentes. Carbono Alterado foi chamado de “o primeiro grande romance cyberpunk do século XXI”. O livro, de fato, destila o que há de mais marcante no gênero, de implantes cerebrais e intrigas corporativas ao verniz nipônico de Blade Runner.

Isso faz com que seu futuro especulativo pareça familiar demais para seu próprio bem. Mesmo assim, ele nunca falha em nos divertir, mesmo em cenas que parecem xerocadas de obra clássicas.

Uma visita a um fabricante de armas traz à mente o ateliê de Q da franquia 007. O hábito de Kovacs de explicar seu raciocínio aos vilões o faz parecer, às vezes, um Hercule Poirot do espaço.

Felizmente, essas diatribes não chegam a cansar, menos pela eloquência de Kovacs que pelas ideias com que brinca. Mais do que qualquer outro romance nos últimos anos, Carbono Alterado disseca um conceito chave ao gênero cyberpunk.

Nosso futuro pós-humano

Transhumanismo é a doutrina de que podemos usar a tecnologia para aprimorar a espécie humana. Corrigir defeitos biológicos, libertar-nos das limitações do físico. Eventualmente, superar a própria mortalidade, o individualismo, os grilhões da moralidade.

Carbono Alterado veste o transhumanismo como uma segunda pele – ou, em seus próprios termos, uma manga. Que o livro tenha sido lançado no mesmo ano que Nosso Futuro Pós-Humano, uma advertência contra os perigos da doutrina, não é mera coincidência. Suas páginas estão recheadas com os sonhos e pesadelos que fervilharam a virada do milênio.

Na sua jornada pelo submundo, Kovacs encontra uma sociedade que superou de tal maneira a “humanidade” que até o senso comum parece ter sido relegado às latas de lixo.

O exemplo mais curioso é seu retrato da Igreja Católica, que parece ter resistido contra todas as expectativas. Católicos não acreditam no upload de consciências. A alma, professam, reside no corpo e não pode ser transferida.

A crença os torna presas fáceis de criminosos e exploradores. Em uma terra de cegos, quem tem um olho é rei. Em uma terra de eternos, mortais estão fadados a serem párias:

 “Kovacs, eu odeio esses loucos malditos. Eles existem há quase dois milênios e meio. Eles foram responsáveis por mais miséria que qualquer outra organização na história. Você sabe que eles sequer deixam seus adeptos praticarem contracepção, pelo amor de Deus, e eles resistiram a todos os avanços significativos da medicina dos últimos cinco séculos.”

Loucos eles podem ser. Porém, em tempos insanos, amiúde são os birutas quem têm razão. Em Carbono Alternado não é diferente. Sua humanidade futurista tem corpos sintéticos, naves espaciais e armas de energia, mas nada que se aproxime de uma alma.

A imortalidade barateou a morte. O suicídio se tornou prática comum – para fraudes elaboradas ou mesmo fetiches.

Três séculos de vida tornaram Laurens Bancroft, contratante de Kovacs, incapaz de sentir prazer convencionalmente. Para aliviar seus impulsos, precisa descer ao mais chulo dos bordéis e simuladores sexuais, experimentando fantasias cada vez mais sórdidas.

Sem a perspectiva da morte para dissuadir criminosos, a punição retorna ao sofrimento. Vítimas tem a consciência transferida a realidades virtuais, onde podem ser interrogadas ou torturadas por milênios.

Não há limites para crueldade, coisa que Morgan deixa assombrosamente claro em sua prosa. Uma cena específica chegou a ser cortada da adaptação da Netflix por conta do seu conteúdo gráfico.

Fé nenhuma no progresso

Carbono Alterado é o oposto diametral de San Junipero, o mais popular, otimista e fantasioso episódio da série Black Mirror. Se o último propõe que até a morte pode ser driblada com a dose certa de megalomania cibernética, o romance de Morgan nos mostra o desfecho inevitável de transformar pessoas em dados:

“A raça humana tem sonhado com o céu e o inferno por milênios. Prazer ou dor infinitos, inacabáveis e irrestritos pelos grilhões da vida e da morte. Graças à formatação digital, essas fantasias hoje podem existir. Tudo o que é preciso é um gerador de capacidade industrial. Nós de fato fizemos o inferno – e o céu – na terra.”.

É verdade, embora saber onde começa um e termina o outro seja mais difícil do que parece. Há muito de infernal e muito pouco de paradisíaco no futuro distópico de Kovacs. É difícil imaginar um cenário diferente, a despeito dos esforços de Morgan para pincelar seu texto com ambiguidade.

Nem a morte, nem a dor, muito menos a perda. É a imortalidade a mais terrível das maldições. Os “loucos malucos” de que Morgan zomba sabem disso há séculos.

Carbono Alterado é um eco à arrogância dos pós-modernos, na sua cruzada quase religiosa para libertar a humanidade do passado– destruindo-o, se preciso for.

Confrontados com a verdade de que seus sonhos são fantasias, pretendem mudar a própria realidade para encaixá-la nos seus delírios. Mesmo que em seu “admirável mundo novo” não haja espaço para a vida:

 “A vida humana não tem valor. Você ainda não aprendeu isso, Takeshi, depois de tudo o que você já viu? Não tem valor intrínseco a si mesma. Máquinas custam dinheiro para construir. Matérias primas custam dinheiro para serem extraídas. Mas pessoas? (…) você pode sempre conseguir mais pessoas. Elas se reproduzem como células cancerígenas, queira você ou não. Elas são abundantes, Takeshi. Por que elas seriam preciosas?”

A frase vem da boca de uma vilã, mas é de uma brutal veracidade. Brutal porque escancara como essa distopia não precisa de ódio, intento ou maldade para existir. Ao reduzir pessoas a carbono, é inevitável que se tornem commodities, pareadas à insignificância pela lei da oferta e da demanda.

Infelizmente, essa não é uma direção que Morgan explora. Fiel aos mandamentos do cyberpunk, o autor vê a culpa no homem, não na tecnologia. Fiel à cartilha do noir, sua narrativa não tem heróis, e a moralidade é um jogo dos poderosos.

Seu futuro é menos uma especulação que um espelho distorcido da própria humanidade.

Homens praticam o mal porque esta é a sua sina. Para isto, utilizarão os instrumentos que tiverem em mãos, sejam eles paus e pedras ou salas virtuais de tortura.

“Kristin, nada muda de verdade” (…) “Você sempre terá babacas como esses, engolindo sistemas de pensamento inteiros para não ter de pensar por si mesmos. Você sempre terá pessoas como Kawahara e os Bancrofs para apertar seus botões e lucrar com o programa. Pessoas para garantir que jogo siga funcionando e que as regras são sejam quebradas com muita frequência. (…) Essa é a verdade, Kristin. Tem sido a verdade desde quando eu nasci, cento e cinquenta anos atrás e pelo que eu li nos livros de história, nunca foi diferente. Melhor se acostumar a isso.”

A ideia de que o próprio sistema seja responsável pelos bugs, que a tecnologia não apenas exacerbe, mas piore a índole das pessoas, não é cogitada.

Morgan, que já se declarou uma “propaganda ambulante do argumento Nature Not Nurture (a ideia de que a natureza, não a cultura determina o caráter)”, tem pouca fé em “progressos” ou “retrocessos”. Perguntado sobre qual seria a mensagem por trás de Carbono Alterado, sua resposta foi mais eloquente que todo o romance: “Não visitem a Terra”. 

O escritor Richard K. Morgan

Morgan escreveu um romance que se insere tão bem no cânone de seu gênero que acabou engolido por ele. Isto poderia ser o bastante em 1964, quando sua premissa não passava de um experimento de pensamento. Ou, talvez, ainda em 2002, quando da publicação original do livro.

Hoje, porém, o cenário é outro. O harboiled old-school, cínico, derrotista e violento sempre terá o seu lugar. No entanto, em um presente no qual uma parte cada vez maior da experiência humana é irreversivelmente digitalizada, precisamos de verdades mais sólidas que as invectivas sarcásticas de um mercenário cínico.