Se me perguntassem há alguns anos o que eu jamais resenharia, quadrinhos de faroeste estariam bem alto na lista.

O western, de verdade, nunca me atraiu. Foi preciso a visão de um Kurosawa e o carisma de um Toshiro Mifune para que eu começasse a respeitá-lo no cinema. E o empurrão da Rockstar para que eu o aceitasse no mundo dos games.

Saint Alamo, que conheci graças ao maior dos acasos, me provocou o mesmo efeito nos quadrinhos. Produzida artesanalmente pelos brasileiros Jonathan Nunes e Rafael Conte, a HQ é uma das grandes surpresas de 2017.

Balas não sentem culpa

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A história acompanha Raymond Castle, um xerife com esqueletos no armário que protege a cidade fictícia de Saint Alamo. Na juventude, Castle serviu na gangue de Silas Dutcherbach, um ladrão, psicopata e ex-confederado que trata seus capangas e seus inimigos com a mesma crueldade.

Sabemos que Castle escapou da vida de criminoso e também que a fuga lhe custou um olho. Sabemos, porém, que “Dutch” ainda está vivo, e que o destino, na Fronteira, é uma eterna roleta russa.  Quando seu irmão e ex-companheiro de gangue lhe paga uma visita, Castle precisa confrontar seu pior pesadelo.

A narrativa é entrecortada por flashbacks que nos apresentam a vida de Castle em seus anos de fora-da-lei. Se não digo que o enredo acerta as notas de Red Dead Redemption é porque não preciso: com um antagonista chamado “Dutch”, recuso-me a acreditar que a referência não seja proposital.

A grande novidade da obra é evidente logo de cara. Suas personagens não são humanas, mas animais antropomórficos, repetidamente baleados, explodidos e mutilados com um sadismo que arrepiaria até um diretor de filme slasher.

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É uma crueldade que pende às vezes a uma histeria moral, quase kitsch em seu exagero. Se isso afogaria outras histórias, no roteiro de Jonathan Nunes ganha espaço para brilhar.

Sua jornada é tão clássica, sincera e estrangeira (com direito a título e nomes próprios em inglês) que dá a volta pela paródia e chega ao nível de fábula.

Com cenas que já vimos inúmeras vezes em outros lugares, Nunes constrói uma parábola da violência, destilando décadas de tiroteio, anti-heróis solitários e gore visceral em oitenta e poucas páginas.

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Não é óbvio o que levou os artistas a desenhar suas personagens como animais. Por um lado, a decisão provoca um contraste horripilante com a violência da história. Sobretudo pelo fato de muitas delas serem referências a personagens infantis como Ligeirinho e Coragem, o Cão Covarde. (Um apêndice didático – e desnecessário – traz a lista de easter eggs ao final do volume).

Por outro lado, o traço de Rafael Conte é tão limpo e expressivo que nos impressionaria em qualquer estilo. É prova de sua habilidade que as capas alternativas, feitas por artistas convidados, não chegam aos pés da sua composição original.

A escolha do preto e branco valoriza o que Saint Alamo traz de melhor. Não apenas a cor acrescentaria pouco ao seu mundo sombrio, como sua ausência reforça o esmero de Conte com o character design.

O destaque vai para Raymond Castle e seu contorno anguloso, tão arisco quanto sua personalidade. Mais ainda para a raposa Rhonda, com linhas da pelagem que flutuam, tal como a personagem, entre o perigoso, o sexy e o trágico.

 

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Numa mídia em que proliferam cópias de mestres japoneses, americanos e franco-belgas, a HQ é um colírio. Saint Alamo deliberadamente imita o estrangeiro e entrega, ainda assim, um quadrinho que parece fresco.

Um novo Texas no Brasil?

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Pode parecer estranho ver em um quadrinho brasileiro uma referência tão americana quanto a Batalha do Álamo. Ou um elenco de personagens com nomes anglófonos, que parecem saídos de um spaghetti western.

O estranhamento é menor se lembrarmos que a HQ nasceu de dois gaúchos: o estado, sem sombra de dúvida, que mais encarnou a experiência da Fronteira no Brasil.

Mas insistir no ponto seria lhe dar uma importância que não merece. Saint Alamo tem menos de O Tempo e o Vento que da ficção hardboiled – e suas releituras modernas, das mãos de criadores como Tarantino ou Frank Miller.

Nunes e Conte não estão preocupados com a “gênese de um povo”. Suas personagens têm rostos de ursos, gatos e coelhos, mas são todas, no fundo, lobos solitários: em guerra com seus passados, seus demônios e consigo mesmas.

A Fronteira que nunca terminou

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O western já foi o gênero mais influente da cultura pop. Por décadas a fio, dominou as telas de cinema e fechou cerco até sobre a “alta cultura”. Então seu domínio caiu de maduro, tal qual um pistoleiro crivado de balas.

Sua violência foi considerada excessiva; sua mensagem civilizatória, problemática; seu mundo, claustrofobicamente masculino.  Seus heróis individualistas foram sufocados por uma turba de punhos erguidos e discursos coletivos.

Ao menos esse foi o julgamento da geração do Civil Rights Movement, que dos anos 1970 em diante não pouparam esforços para condenar John Ford, Sergio Leone e John Wayne à lixeira do passado.

Mas o veredito pode ter sido apressado – e a sentença, mal-executada. O faroeste tem se reinventado no cinema (Os Oito Odiados, O Regresso), videogames (Red Dead Redemption, Hard West) e mesmo em neo-westerns (Breaking Bad, Logan) que atualizam suas mensagens às sensibilidades modernas.

Pode bem ser que tenhamos algo a resgatar da Fronteira. Um antídoto, seja ao escapismo alucinógeno dos super-heróis, seja ao coletivismo histérico que tem fraturado (literalmente) países.

Saint Alamo é parte desse resgate, cujas próximas edições eu aguardarei ansioso, entre poças de sangue e o cheiro de cordite.