Prisão epifânica é um tipo de cárcere em que não sabemos que estamos presos. É só quando tentamos fugir que descobrimos que nossa vida, na verdade, é uma cela.

É a Caverna de Platão, a Matrix, a Seahaven Island de O Show de Truman, o Museu do Silêncio de Yoko Ogawa, o Fim do Mundo de Haruki Murakami.

Não parece, à primeira vista, ser o caso do “Infinito no Meio”, cenário do livro homônimo de Priscilla Matsumoto. Que o romance consiga subverter esta expectativa é um de seus aspectos mais satisfatórios.

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O Infinito no Meio é a história de Cecília, uma mulher que vive “fora do tempo”. Há trinta anos, ela habita um apartamento do qual não pode sair.

Lá, os ponteiros do relógio não se mexem. Cecília não envelheceu um único dia. Machucados nunca saram. Feridas abertas continuam abertas.

Na sua prisão curiosa, espécie de limbo do mundo real, a garota é visitada por criaturas misteriosas e aparições daqueles que conheceu. No entanto, quando alguém de carne e osso finalmente bate à porta, tudo o que ela acha que sabe ameaça cair por terra.

O “Infinito no Meio” é uma prisão óbvia, e talvez na sua simplicidade esteja sua mais força. Em um estilo eclético, misturando conversas com seres fictícios a descrições viscerais de sofrimento, Matsumoto nos convida a uma história de que não sabemos, a princípio, o que esperar.

O romance é publicado pela Editora Draco, que fez um nome no mercado na seara da literatura de gênero – fantasia, sci fi, mistério, chick-lit. Não pense, porém, que o livro é facilmente reduzível a qualquer uma destas categorias. Não mais, pelo menos, que O Outro Pé da Sereia pode ser descrito como “fantasia”, ou Não me Abandone Jamais como “ficção científica”. Priscilla mira mais alto.

Sua protagonista ama o filme Persona (1966), e sua trama de fato segue as linhas da película de Bergman. As duas histórias dizem respeito a mulheres fechadas ao mundo e aos esforços (nem sempre benquistos) para trazê-las de volta.

Logo de início fica evidente que seu texto opera num nível metafórico. O livro é uma alegoria sobre o trauma – e seus efeitos nas vidas de quem toca.

Cecília foi “partida” em várias após um incidente terrível e fica fadada a revivê-lo eternamente. Qualquer semelhança com Mawaru Penguindrum, anime com que compartilha sensibilidades políticas, não é mera coincidência.

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Tal como Ikuhara em Penguindrum, Matsumoto cita Haruki Murakami como referência, e é evidente em suas páginas os empréstimos do escritor japonês.

Em uma de suas cenas mais inspiradas, Nathan, o garoto que bate à porta de Cecília, lhe traz um laptop para conectá-la ao mundo. Enquanto assistem a um seriado sobre vampiros, um sanguessuga habitué do Infinito no Meio surge para dar pitacos sobre sua “verossimilhança”.

É o tipo de casualidade pós-moderna que esperamos de uma Kafka à Beira Mar, em que Johnnie Walker e Coronel Sanders dividem espaço com desertores fantasmagóricos de uma carga banzai.

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Assim, é uma pena que a prosa de Matsumoto não esteja à altura de seu argumento.

Sua escrita é afetada por aliterações (“seu perfume perdurou junto a meus poros”), repetições (“o silêncio enlutado… o silêncio presta luto”) e lugares comuns (“minha ferida jorra sangue”).

Na sanha de se expressar como uma “alma envelhecida”, o linguajar de sua narradora cai no vale de estranheza: não exatamente naturalista, nem rebuscado o suficiente para convencer pelo contraste.

Em nenhum instante isto é mais evidente que em seus quadros surrealistas, nos quais o sutil perde espaço ao trivial:

Então ele me explicou o que era um dokkaebi. Tratava-se de uma espécie de demônio advindo do folclore coreano, um espírito que não era maligno nem benigno, mas que andava por aí pregando peças nas pessoas. Algo entre o saci-pererê e o deus Loki da mitologia nórdica. O dokkaebi, porém, provinha de um objeto inanimado que ganhara vida.

Nunca vi um dokkaebi. Mesmo assim, tenho dificuldade em imaginar que um espírito arteiro se descreva com a formalidade de um verbete da Wikipedia.

Não existe fórmula para lidar com o sobrenatural, mas há circunstâncias onde menos é mais.

A ovelha estrelada de Caçando Carneiros e os INKlings de O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo, para citar dois exemplos, não têm razão de existir. São entidades acima da lógica, que habitam a zona cinza do nonsense própria a toda experiência humana.

O Infinito no Meio é uma narrativa seca e intimista. Sobrecarregado com tanta bagagem, o feitiço se rompe. E suas criaturas, tão interessantes, se reduzem a gimmicks retóricos.

A brutalidade do texto ajuda pouco. E é justamente quando o romance expõe seus segredos mais chocantes que sua mensagem titubeia.

Não foi por acaso que Roberto Benigni escolheu a comédia para falar sobre o Holocausto. Nem que Murakami optou por quebrar a exasperação de Norwegian Wood com as travessuras da irreverente Midori.

O humor, o nonsense, o patético e o satírico são ferramentas que inventamos para contextualizar nossa dor. A vida, tal como a música, é melhor servida com dinâmica.

O Infinito no Meio, pelo contrário, é quase inteiramente monotônico. Quando finalmente mostra suas cartas e entendemos a real tragédia que nos é contada, já estamos amortecidos pelo seu pathos.

Tudo isso é coerente com o propósito da obra. Mas é uma pena que o conceito se articule às custas da complexidade moral.

Cecília cruza com várias personagens, algumas humanas e outras nem tanto, mas não há aqui Settembrinis ou Naphtas. Cada novo encontro parece apenas reafirmar seu desejo de ver aqueles que a feriram sangrar.

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Mas seria o “sangue”, de fato, a chave da prisão? É o que perguntaria o jovem Bergman, mas o mero ato de perguntar já traz uma nuance que a trama pretere em função de respostas fáceis: o “mundo podre”, a “decadência humana”, os homens nocivos por natureza. Ao ceder a estas generalizações, algo fundamental escapa pelos dedos.

Como disse o próprio Murakami a respeito de outro grande trauma:

Talvez seja um risco ocupacional da profissão de romancista, mas eu sou menos interessado no “quadro geral” tal como ele é do que na humanidade concreta e irreduzível de cada indivíduo.

A mídia japonesa nos bombardeou com tantos perfis aprofundados dos criminosos da seita Aum – os “atacantes” – formando uma narrativa tão esbelta e sedutora que o cidadão médio – a “vítima” – se tornou quase um afterthought. O “espectador A” era vislumbrado só de passagem. Muito raramente uma narrativa “menor” era apresentada de uma forma que recebesse atenção. As poucas histórias que surgiram foram contextualizadas em glosas formulaicas. Nossa mídia provavelmente queria criar uma imagem coletiva do “sofredor japonês inocente”, o que é muito mais fácil de se fazer quando você não tem de lidar com rostos reais. (…)

É por causa disso que eu queria, se possível, me afastar de qualquer fórmula; reconhecer que cada pessoa no metrô naquela manhã tinha um rosto, uma vida, uma família, esperanças e medos, contradições e dilemas – e que todos estes fatores tiveram um lugar no drama.

Mesmo assim – ou, talvez, por causa disso – o romance envereda para uma conclusão sofisticada.

O fim de O Infinito no Meio convence, se nada mais, pela distração. Tal como num truque de mágica, o romance revela as cartas no primeiro ato para mostrar, no final, que o truque estava lá desde o começo.

Pode uma história se apoiar na força de um twist? O finado Roger Ebert diria que não. De minha parte, não posso negar que a trama, mesmo em seus trechos mais insípidos, me inspirou  fascínio.

Cada vez que pousava o livro minha mente permanecia com suas personagens torturadas. Ao retomá-lo, tinha medo do que iria encontrar.

Às vezes, apenas isso é necessário.

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