Cidades não são apenas lugares. São também comunidades de pessoas, teias de rotinas, confusão. A “selva de pedra” não é feita só de concreto. É orgânica, como um ecossistema.
Em Tóquio, a selva de pedra por excelência, isso fica evidente em seus festivais. E nenhum festival sacode mais a capital japonesa – no sentido literal da palavra – do que o Sanja Matsuri.
Tive a oportunidade de frequentar vários festivais na vida. Com a exceção da gastronomia, creio que poucas ocasiões são melhores para entender uma cidade quando está “desarmada”, pronta para a descontração.
Festivais, contudo, muitas vezes pecam pela teatralidade. Toda festa é uma interrupção. Porém, se ela for brusca demais, sentimo-nos apenas como espectadores, esperando o desfile passar.
O Sanja Matsuri é o maior festival de Tóquio, mas isto diz pouco. É, também, um daqueles raros eventos para os quais não existem transeuntes. Todos participam, seja em um palanque, seja no burburinho das calçadas.
A festa se inicia no templo de Asakusa, no bairro de mesmo nome de Tóquio. Santuários portáteis chamados mikoshi são desfilados ao redor do bairro.
Talvez eu tenha me expressado mal. Por “desfilados”, não estou pensando nos bonecos do Carnaval de Olinda. Os mikoshi são violentamente sacudidos de um lado para o outro, com uma fúria que o fará pensar que entrou em uma partida da seleção neozelandesa de rúgbi por engano.
Não é preciso muito para entender que, a despeito das tintas budistas, o Sanja Matsuri parece mais um carnaval do que uma procissão religiosa. Os mikoshis são carregados por “times” específicos, uniformizados com seus próprios kimonos, que gritam e agitam os santuários como se em uma competição de gogó.
O evento é tão absurdo e hilário que serviu de inspiração para o hit do humor nonsense nos animes, Sayonara Zetsubou Sensei. No episódio 7 da primeira temporada, os alunos do Prof. Itoshiki decidem ir a um festival, onde são jogados sobre mikoshis e “homenageados” com o tratamento de Asakusa.
Se isso tudo ainda lhe parece pacato, talvez seja bom especificar que, por “kimono”, não estou me referindo ao traje formal japonês, mas ao happi, uma sobrecapa leve.
E o resto, você pergunta? Tradicionalmente, apenas roupa de baixo.
Nem todo mundo segue o costume à risca, mas esteja avisado: você verá sua cota de bundas nipônicas, não importa quanto tempo fique no festival.
Curiosamente, a “pouca roupa” de alguns participantes acabou por se tornar uma atração em si. Isto porque o Sanja Matsuri é o festival favorito dos yakuza, que aproveitam a ocasião para ostentar suas tatuagens.
A presença da máfia já se tornou tão famosa que se reflete até nos souvenirs. Andando pelas lojinhas do bairro, é possível encontrar até bonecas dos icônicos gângsters.
Neto de calabreses que sou, confesso que tive medo de interagir com os yakuza. No entanto, não havia falta de gaijins serelepes importunando mafiosos atrás de fotografias.
Para além dos mikoshi e da companhia seleta, o Sanja Matsuri também é uma excelente oportunidade para se visitar o bairro de Asakusa (imperdível por uma série de razões, algumas das quais contarei em colunas vindouras).
A própria estrutura do festival estimula a exploração. Pequenos palcos estão dispostos ao longo das ruas, onde grupos se apresentam com dança e músicas tradicionais.
Se você, como eu, é fã de Showa Genroku Rakugo Shinjuu, o bairro é uma atração em si. Isto porque Asakusa é o lar do famosíssimo Engei Hall, um dos quatro teatros de Tóquio a exibir rakugo com regularidade.
Passeando pela rua, é possível conferir a escalação de apresentações, igualzinha à mostrada no prestigiado anime.
Ao ver aqueles rostos, pensei em todos os Sukerokus e Yakumos do Japão, insistindo para manter sua arte viva em pleno século XXI.
O passeio, já aviso, é exaustivo. Mesmo sem sacudir o mikoshi, é quase certo que terminará o dia suado. Isto não significa que não seja possível parar para respirar. E que local melhor para a ocasião do que o ponto mais alto do Japão?
A Tokyo Sky Tree, próxima de Asakusa, é a torre mais alta do Japão e segunda estrutura mais alta do mundo, atrás apenas do Burj Khalifa. O monumento oferece uma vista sem paralelos da capital – e um bônus específico aos otakus.
No Japão, é comum que mirantes ofereçam exposições sobre a cultura pop, aproveitando seu excelente (e super impressionante) espaço. Nesse ano, a escolha foi óbvia. A Sky Tree celebrou a segunda temporada de Attack on Titan com uma exibição que incluiu figures em tamanho real e células de animação.
Não fosse o bastante, ainda realizaram sessões interativas do anime. O curta, transmitido nas próprias janelas do mirante, retrata um ataque dos titãs à torre, e as manobras da Divisão de Exploração para proteger os visitantes.
Novamente me expressei mal: embora o passeio seja uma quebra depois da euforia de Asakusa, está longe de ser um descanso. As filas da Sky Tree podem ser quilométricas, e seu mirante, em balbúrdia, rivaliza com a Torre Eiffel.
Contudo, se quiser pagar de “diferentão” e evitar o pior, vá de noite. Não só você desfrutará de uma vista fenomenal, como evitará as hordas de turistas que sobem na torre para ver o pôr do sol.
Tudo por uma boa causa. Afinal, não é sempre que vemos Mikasa e Levi em ação a 634 metros do chão.
Comentários
Adorei a foto do line-up do teatro =D
Se entendi, são duas apresentações de rakugo, uma apresentação de qualquer-outra-coisa, repete, é isso? Yakumo viraria a cara em desprezo, hahaha!
Fora que todos os rakugokas estão bastante simpáticos pelas fotos, parecem ter abraçado o lado comediante da arte. Não existe ali uma só expressão sisuda, séria ou solene. Todos sorrindo, fazendo poses ou caretas. Até um que parece bastante velho (quarta foto de cima, senhor de vermelho) entrou no jogo!
Até quando o rakugo vai viver eu não sei, mas se ele um dia já foi como Rakugo Shinjuu retrata, essa foto sozinha mostra que mudar, ele mudou.
E excelente artigo no geral, como toda a série (li alguns artigos, um dia leio todos, mas parece que você tem conteúdo pro ano todo, hein? e bastante variado, hehe)
Sim, o Engei Hall apresenta todo tipo de coisa, não só rakugo. Nem sei se existe no Japão um lugar exclusivo para rakugo. No Ocidente pelo menos teatros passam de tudo (peça, ópera, ballet, música, stand-up). Imagino que donos de teatro iam preferir abrir as portas a outros gêneros antes de chegar ao estado deplorável daquele teatro do anime.
Confesso que fiquei com muita vontade de assistir a uma performance para ver o quanto mudou, mas realmente não deu. Imagino que seja inevitável, já que o humor em si muda muito. O Yakumo tinha um estilo bem “deadpan”, à la Buster Keaton no Ocidente. Hoje em dia a comédia japonesa parece bem calcada no histrionismo e nonsense.
Fique de olho, pois falarei um pouco mais sobre isso em uma coluna sobre o teatro Noh (esse, sim, tive a oportunidade de ver!). Há um teatro cômico que é apresentado como “abertura” de peças Noh. Algumas, recentemente, foram adaptadas de histórias de rakugo.
Obrigado pelo comentário! Fico feliz que esteja gostando da série!