Esse artigo é parte de uma série. Para ver os demais, clique aqui.
Alguns passeios são óbvios. Outros, nos fazem coçar a cabeça em desassossego.
No Japão, esse é o caso do santuário Yasukuni.
Trata-se de um templo dedicado aos heróis militares que morreram em nome do Japão.
Até aí, nada demais. O problema é que, entre os “homenageados” estão 14 criminosos de guerra classe A, incluindo Hideki Tojo, primeiro ministro fascista que liderou o país durante a segunda guerra.
Para entender o quão chocante isso é, imagine um monumento aos heróis da Alemanha em Berlim, com Hitler e Himmler entre os imortais consagrados.
Yasukuni é uma polêmica a céu aberto, que virá e mexe azeda a relação do Japão com seus vizinhos. Cada visita que o santuário recebe de um primeiro ministro (e acredite, foram mais de uma) é um incidente diplomático.
As objeções vêm sobretudo de chineses e coreanos, que dizem que o monumento esconde as pavorosas atrocidades que os japoneses cometeram contra seus povos. É fácil simpatizar: a China foi o país com o segundo maior número de mortos de toda a guerra, atrás apenas da União Soviética.
Não é exatamente um passeio good vibe, muito menos um ponto turístico no topo da lista de qualquer guia. Entretanto, como historiador, senti que era meu dever enxergar esse monumento com meus próprios olhos.
O que encontrei foi de arrepiar, mas também foi fascinante.
A primeira coisa que chama a atenção, ao chegar da estação Ichigaya do metrô, é seu tamanho. Yasukuni não é apenas um santuário, mas um complexo que inclui até mesmo um teatro noh. Mesmo visitando num dia de chuva, seus portões são uma visão de peso.
Não mentiria se dissesse que foi o templo mais imponente com que cruzei no Japão. E olha que não foram poucos.
Mais importante (e controverso) é o museu militar Yushukan, que faz parte do complexo. Sua coleção possui legendas em inglês, mas não se engane: você não verá muitos ocidentais no passeio. Ao explorar as galerias, não é difícil entender o porquê.
O museu possui uma exibição sobre os primórdios da guerra no Japão, da antiguidade até o período Edo (1603-1868). A maior parte da sua exposição, contudo, diz respeito à modernização do Japão – e sua escalada como potência global no século XX.
À primeira vista, há muito mesmo do que se orgulhar. Em 1900 afinal de contas, um outrora primitivo Japão marchava lado a lado com as potências ocidentais. Em 1905, tornou-se a primeira nação não-ocidental a derrotar um império europeu. Em 1941, sua marinha era uma das mais formidáveis e modernas do mundo.
O que a exposição não fala (mas deixa subentendido) é que a cruzada do Japão contra o “imperialismo ocidental” fora feita na tentativa de imitá-lo. E que sua visão de “prosperidade asiática” implicou em um dos regimes mais sanguinários da história da humanidade.
A invasão japonesa da China, que ocupa boa parte da exibição, é mascarada como uma série de “incidentes” entre tropas japoneses e insurgentes chineses – os últimos, obviamente, sempre os agressores.
Suas explicações vão do patético (ao dizer que o Chi Ha era um tanque de respeito) ao humilhante (ao implicar que os civis massacrados no Estupro de Nanquim eram soldados chineses disfarçados).
O museu reitera em quase todas as salas que o Japão sempre foi uma “nação de paz”. Seus painéis, contudo, celebram baixas americanas na Guerra do Pacífico, e seus corredores estão decorados com fotos de Wildcats abatidos por Zeros.
O custo humano da beligerância de Tojo mal é mencionado. Pelo contrário, fãs do ditador podem conferir uma bandeira autografada por ele e pelos demais réus do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, o equivalente japonês de Nuremberg.
Não, não estou brincando. Isso é sério, e faz parte da exposição. O museu não permite fotos da maior parte de seu acervo (por que será?), mas eu por sorte guardei o flyer:
Yasukuni é um monumento ao vitimismo. É a apologia a uma ditadura que arruinou a vida de seus cidadãos, que esteve tão certa de sua vitória que, 70 anos depois, ainda não consegue entender como perdeu.
Ao rondar pelos destroços de torpedos e aviões, confesso que fantasiei em vê-los tomando vida e se integrando à natureza, como os robôs de Laputa. O museu faz o pacifismo caricato de Miyazaki finalmente ganhar sentido, e mostra como a mensagem de seus filmes, às vezes criticada por ser programática, é obrigatória em seu país de origem.
Nesse sentido, é digno que a parte mais honesta e tocante da exposição seja justamente o lixo.
Capacetes, cantis e armas destruídas, espalhados às centenas. Um epitáfio aos milhões de japoneses mortos na selva em nome de um regime odioso.
Tal como nos filmes de Miyazaki, o orgulho militarista foi ao Japão sua asa de Ícaro. E é ao pó, à ferrugem e a sujeira que esteve fadado a se estatelar.
Uma aventura no Japão continua na próxima segunda. Fique de olho!
Últimos comentários