(Aviso: contém SPOILERS de Nier: Automata)
Dizer que Nier: Automata é um jogo excepcional já é quase chover no molhado.
Seu criador, Yoko Taro, sempre foi conhecido por pensar fora da caixa, mas nenhuma de suas obras, até agora, chegou tão perto do rótulo de “mainstream”.
Historiadores dos games dirão se sua visão inusitada do pós-apocalipse foi ou não um divisor de águas. Seja como for, é inegável que o jogo nos trouxe uma narrativa muito mais sofisticada do que estamos acostumados a ver em nossos consoles.
Nier: Automata apresenta um argumento ousado que vira de ponta cabeça o que entendemos por “narrativa” – e uma mensagem, curiosamente, tão velha quanto a própria ficção.
O peso do mundo
Quando pensamos em “história”, geralmente o que nos vêm à cabeça é uma narrativa linear, com começo, meio e fim. Por mais ousado que seja um enredo, coisas sempre acontecem, uma após a outra.
Se isso for verdade, o que fazemos com a lore de um jogo, filme ou livro? Ela também não é parte daquela história (mesmo que não apareça diretamente)? E as backstories das personagens? E suas visões de mundo, seus planos para o futuro que não necessariamente colocarão em prática?
Essas questões levaram alguns estudiosos a interpretar narrativas não como flechas com começo, meio e fim, mas como “mundos” paralelos. Ou, mais precisamente, constelações de pequenos mundos.
No centro está o mundo da história. Ele corresponde ao que acontece de “verdade” na ficção: os eventos que vemos, lemos ou jogamos na trama. Porém, ao lado desse mundo (e aqui está a grande sacada) existem muitos outros mundos alternativos.
São os “mundos” pessoais das personagens, com valores diferentes e interpretações diferentes sobre o que é o certo e o errado. São os sonhos, delírios, pesadelos e apreensões das pessoas que habitam a história. São os cenários distópicos que seguem uma tela de game over – e que, nós, jogadores, tentamos ao máximo evitar.
Em alguns casos, esses “mundos” são literais. Em Majora’s Mask, Link viaja entre futuros alternativos, saltando de “mundo” a “mundo” na esperança de evitar a queda da Lua.
Em outros casos, são questões de ponto de vista. Shepard e os Reapers em Mass Effect podem habitar a mesma galáxia, mas vivem em “mundos” diferentes. O do herói humano é linear, baseado na liberdade e no agora. O de seus vilões é cíclico, medido em regras que só fazem sentido no nível sideral.
Nier: Automata pertence ao segundo grupo, com um pequeno (grande) diferencial:
Nele, o “mundo da história” não existe.
Não, ao menos, a princípio.
Seu enredo é contado pelos mundos pessoais das personagens – que não são poucas. O problema é que nenhuma tem a verdade completa. Nem a garantia de que está perto de desvendá-la.
2B sabe das ordens mais sórdidas da Yorha, mas não se importa com suas consequências. 9S descobre a verdade sobre o Projeto Gestalt. A Comandante sempre a soube, mas não faz ideia de que ela – e suas guerreiras – foram feitas para serem descartadas.
A2 não conhece os segredos da YorHa, mas está viva desde que a organização surgiu, e sabe que sua “cruzada” é inútil. Pascal entende o mundo das máquinas, mas não conhece aquele dos androides. Adam e Eve tampouco, mas sabem o que aconteceu aos alienígenas.
O que nenhum deles sabem é o significa ser “humano”. Quem foram, afinal de contas, essas criaturas estranhas que os criaram à sua imagem, e cujo mundo eles herdaram.
Os cegos e o elefante
Existe uma parábola famosa do budismo que conta de um grupo de cegos tentando adivinhar qual é a aparência de um elefante. Cada um apalpa uma parte diferente do animal, mas quando comparam suas impressões, cada um descreve um animal diferente.
A moral da história é que nossos pontos de vista são limitados, e que mesmo que saibamos a “verdade”, dificilmente é a verdade completa.
Por trás do combate frenético e das melodias de Keiichi Okabe, Nier: Automata é uma nova versão dessa mesma fábula.
Presas em um mundo condenado, as máquinas de Yoko Taro tateiam inutilmente, buscando descobrir o que significa ser “humano” – e qual é o sentido da vida.
Como aprendemos em uma cutscene, “Deus” – seja ele o que for – deu senciência às máquinas. Cada uma passou a buscar seu próprio sentido da vida – um “tesouro” particular.
Para Pascal e o rei da floresta, a “humanidade” está na família. Para Adam, ela está no ódio. Para a seita de robôs da fábrica, em suicidar-se e “tornar-se um Deus”. Para a Comandante da YorHa, em ter uma causa para lutar – mesmo que esta causa seja uma mentira, e a luta, irrelevante.
Isso não é de se espantar. Nier: Automata, no final das contas, está imerso em filosofia. E não falo apenas das inúmeras referências a pensadores (Pascal, Engels, Hegel, Simone de Beauvoir) que o jogo nos dispara.
Esses pequenos easter eggs divertem, mas não são o fundamental. Nier: Automata não é um jogo filosófico, e sim um jogo sobre a filosofia.
É uma fábula sobre a tarefa que motivou as versões reais de todos esses bosses a gastar tanta tinta: entender qual é nosso lugar no mundo.
Pois nós, também, não sabemos qual é nosso “mundo da história”. Sabemos que a realidade existe, mas nós a filtramos a partir de nossas experiências.
O que é de “verdade” e o que é “impressão”? Onde termina a aparência e começa a essência?
Não existem respostas definitivas, mas a filosofia é um caminho que nos dá algum sossego. Como dizia Platão, é um jeito de sair da “caverna” e encarar o mundo pelo que de fato é.
2B e 9S também saem de sua caverna. Durante a maior parte do jogo, eles permanecem vendados. Nos momentos crucias, porém, eles encaram o mundo com seus próprios olhos.
Quem está “certo”? A2, que impede as máquinas de acessar o que restou da memória dos humanos (e cujo final, sarcasticamente, chama-se meaningless [C]ode)? Pascal, que prefere a mentira da “caverna” à lembrança de que suas crianças se mataram? Qualquer uma das versões de 2B e 9S, em seus 26 desfechos possíveis?
No final, existe “certeza”?
Por linhas bem tortas, Yoko Taro parece dizer que sim. É por isso que o final “E” de Nier: Automata é anunciado como o final “verdadeiro”. De fato, ao longo das 3 playthroughs, é possível ter uma boa ideia da “verdade” por trás dessa Terra futurista.
Ao jogarmos com 9S, vários detalhes escondidos vêm à claro. Descobrimos que nossos inimigos possuem sentimentos. Que os goliaths possuem nomes e personalidades. Que a humanidade já foi extinta. Que androides e máquinas são a mesma “espécie”, lutando uma guerra inútil por um planeta desolado.
Mesmo quando Nier: Automata desiste e nos mostra a “verdade”, é a contragosto, quase com desdém.
Jogos ricos em worldbulding, como Mass Effect, Dragon Age e Bioshock, costumam pedir para que conheçamos seus mundos. Entradas de codex, voxophones e audio diaries estão espalhados por toda parte, pedindo para ser lidos.
Em Nier: Automata, arquivos de sua “enciclopédia” foram escondidos a sete-chaves, em baús protegidos. Mesmo que os encontremos, são quase incompreensíveis sem um crash course na lore de Nier/Drakengard.
A cruzada de YorHa e a rede das máquinas não são os únicos “códigos inúteis” que encontramos pela frente. Fã da metanarrativa, Yoko Taro desafia a noção de “autor”. Seu “mundo” não faz sentido, mas carrega, mesmo assim, um peso.
Todos nós, como seus construtos infelizes, carregamos nossos próprios “tesouros”. Não é muito, mas é o que nos faz seguir em frente, com algum conforto, por esse mundo sem propósito.
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