Existem pautas que nos pegam de surpresa, e outras que não aguentamos de vontade para colocar no papel.
O texto de hoje é do segundo tipo.
Qual foi minha surpresa ao navegar pelos canais da editora Aleph e descobrir que Solaris, clássico insuperável de Stanislaw Lem, ganharia uma nova (e linda) versão brasileira.
Por acaso, é também das minhas histórias favoritas, sobre a qual há tempos queria dedicar um post.
Aperte os cintos, portanto, e entenda como essa história transformou a literatura.
1) Solaris foi a terceira via para a ficção científica.
Solaris é um livro estranho.
Sua trama acompanha um grupo de cientistas em uma estação espacial na órbita de um planeta. Este “planeta”, contudo, não é um mero corpo celeste, mas lar de um “oceano” que parece ter vida própria.
Seria ele um ser sapiente? Uma inteligência superior? Um delírio de suas mentes?
Suas pesquisas são interrompidas quando descobrem que não estão sozinhos. Pessoas importantes de sua vida que deveriam estar na Terra – em alguns casos, que já morreram – começam a assombrá-los.
Não demora para que percebam que não são eles que estudam Solaris, e sim o oceano que os estuda. E que aquelas “aparições” são tentativas da criatura de compreender a mente humana.
Seria o argumento de uma ficção científica como tantas outras, não fosse a maneira como foi contada. Solaris lida com tecnologia, mas não cede ao technobabble. Traz um futuro interestelar, mas não uma lore para ancorá-lo. Aborda dilemas clássicos da ciência, mas oferece apenas mais dúvidas.
Se o livro nos parece tão original, é porque conquistou um espaço próprio em uma época em que o sci fi passava por sérias transformações.
A ficção científica que conhecemos ganhou seu nome de Hugo Gernsback, baseado nos textos clássicos de Júlio Verne e H.G. Wells (embora alguns tenham argumentado que existia desde muito antes).
Era um gênero não apenas sobre ciência, mas pró ciência, navegando em uma fé no poder transformador da tecnologia que marcou a era industrial.
A despeito da pompa, foi um estilo que se difundiu por caminhos alternativos, inaugurando, no processo, convenções e fanzines pulp que seriam o berço da cultura geek.
Nos anos 1960, um grupo de artistas denominado New Wave – inspirado na Nouvelle Vague do cinema – viraram o gênero de ponta cabeça, buscando elevá-lo ao patamar da alta literatura.
Com muito experimentalismo, o grupo criticava as revistas pulp e prezava por temas mais filosóficos e psicológicos. A ficção científica “soft” chegava para ficar.
Não à toa: a ciência que encantara Verne não era mais vista com os mesmos olhos.
Os horrores da segunda guerra e o advento da bomba H mudou a forma como as pessoas viam a tecnologia. Se antes o engenho humano era a chave para o futuro, agora era o reflexo do que tínhamos de pior.
Solaris se encontra a meio caminho dos dois mundos. Suas páginas são recheadas de ciência, mas seus conflitos são intimistas. Sua conclusão traz ansiedade, mas não o desespero.
O livro é uma exploração conceitual da natureza da vida, mas também uma incrível história de amor. Ao ser visitado por um duplo de sua esposa morta, seu protagonista, Kelvin, não pensa em logaritmos e equações, mas em uma coisa mais primária.
Se ela é sua esposa (ou bem perto disso), o que o impede de fugir com ela e reconstruir a vida que o destino lhes tolheu?
Lem fala de temas intelectuais sem esquecer o elemento humano; de angústia sem cair no cinismo.
Ele não comprou o utopianismo soviético, nem a histeria distópica que marcou o sci fi na Guerra Fria. Não porque não se apavorasse com o destino do planeta, mas porque o achava um tema muito importante para ser tratado de forma tão rala:
O fim do mundo, o Juízo Final atômico, a epidemia provocada pela tecnologia, o congelamento, dessecação, cristalização, incêndio, colapso, automação do mundo, etc, não têm mais qualquer sentido na ficção científica hoje. Eles perderam o sentido porque passaram pela típica inflação que transforma o terror escatológico em sustos agradáveis. (…) Eu acho um fenômeno muito triste testemunhar a execução indiferente com que tais romances são produzidos.
Solaris, assim, também é uma ode à humildade. Com uma trama diminuta, conseguiu ser mais eloquente que bibliotecas inteiras dedicadas ao apocalipse.
2) Solaris reinventou o “alienígena”.
A obra-prima de Lem é um livro seminal por vários motivos. De tudo o que trouxe de novo, porém, o que o alçou aos cânones da literatura foi seu retrato do alienígena.
Do início da ficção científica, habitantes de outros planetas foram retratados como pessoas, com maior ou menor nível de estranheza. Na maioria das vezes, são verdadeiras metáforas sobre o que significa (ou não) ser humano.
O romance de Lem apresentou uma das subversões mais ousadas dessa ideia, ao nos apresentar um alienígena que sequer pode ser chamado de “ser”. “Solaris” é vivo, mas também é um oceano, um planeta, uma força primordial do universo.
É um terror lovecraftiano de uma proporção que nem o pai da ficção weird foi capaz de conceber. A despeito da verborragia com que são descritos, os monstros e tentáculos do criador de Cthullu empalidecem diante de uma presença que ultrapassa o medo, o horror, a própria existência.
Lem não rompeu paradigmas apenas pelo desejo de pagar de diferente. Como tantos outros mestres do gênero, o escritor pensava como um cientista – e, como tal, sabia que a ciência não traz respostas, apenas perguntas.
Kelvin, seu protagonista em Solaris, entende isso muito bem:
Um ser humano é capaz de lidar com pouquíssimas coisas ao mesmo tempo; nós vemos apenas o que está acontecendo na nossa frente, aqui e agora. Visualizar a multiplicidade simultânea de processos, não importa como estejam interconectados, está além de nós.
Se a era clássica do sci fi era uma ode à invencionice humana, Solaris é um tributo às horas perdidas em laboratório, às teorias feitas e reformuladas, aos manuscritos rasgados e jogados ao lixo.
À parte, enfim, mais instigante do saber.
3) Stanislaw Lem odiava a ficção científica…
É de se esperar que um dos maiores expoentes da ficção científica fosse também um fã do gênero. Afinal, escrevemos os livros que gostamos de ler. Não é mesmo?
Não exatamente. Por mais absurdo que soe, Lem foi um crítico tão mordaz do sci fi que chegou a ser expulso da associação Science Fiction Writers of America.
Muito disso, claro, foi obra das suas circunstâncias. Vivendo na Polônia em plena ditadura comunista, o escritor tinha dificuldades para importar trabalhos estrangeiros.
A isso se somava outra “cortina de ferro”: Lem nunca aprendeu inglês direito e dependia de traduções para outras línguas, sobretudo o alemão.
Sua literatura, portanto, foi escrita em relativo isolamento. Mesmo quando as portas do Oeste começaram a se abrir, ele nunca se sentiu parte da comunidade sci fi que desabrochava no mundo anglófono.
Pelo contrário, ele a detestava.
O autor de Solaris achava que a ficção científica era extremamente ambiciosa, mas que 99,9% do que produzia era um lixo. Suas obras lidavam com as questões mais fundamentais da humanidade, mas o faziam da forma mais superficial, batida e mal escrita possível.
A culpa, dizia, estava nas políticas editoriais. Como ele mesmo colocou:
O problema persiste que todos os livros de ficção científica são parecidos um com o outro – não segundo seu conteúdo, mas a forma como ele é recebido. Inúmeras imitações de cada obra original aparecem, de maneira que os originais são enterrados debaixo de montanhas de lixo, como torres de catedrais em torno das quais entulho foi jogado durante tanto tempo que apenas as pontas se projetam do refugo que se estende em direção aos céus. Neste contexto, vale perguntar quantos são os iniciantes talentosos que não têm poder suficiente para preservar sua individualidade como escritores.
Lem não era ingênuo a ponto de achar que a literatura “séria” não sofria problemas semelhantes. A diferença, para ele, é que neste caso críticos, público e divulgadores trabalhavam para separar o joio do trigo.
Autores como Herman Melville e James Joyce não fizeram sucesso em vida, mas sua obra sobreviveu, graças a uma intelligentsia disposta a escavá-los em meio a bibliotecas de romances esquecíveis.
Não as pérolas da ficção científica, cujos “intelectuais” dançavam à música das editoras – e a favor da mediocridade.
Suas palavras são de 1972, mas é apavorante quão atuais elas parecem.
Quem nunca viu gigantes da “mídia especializada” babando ovo para blockbusters mastigados? Prêmios “imortalizando” modinhas esquecíveis, “experts” forçando tendências que não têm nada de novo?
Em um meio como esse, é inevitável que “iniciantes talentosos” amarguem no esquecimento.
Muitos (inclusive esse que vos escreve) já falaram da “crise do mundo nerd”. Lem diagnosticou esses mesmos problemas quarenta anos antes, na época em que ele acabava de nascer.
Mais do que isso, são problemas de que nós, críticos e blogueiros, compartilhamos a culpa. Na tentativa de fazer o geek abarcar tudo, corremos o risco de colocar tudo por terra.
Lem, contudo, não era um hater – muito menos um profeta. Por mais que tenha criticado a ficção científica, ele também fez muito para transformá-la no que é hoje.
Suas críticas eram cáusticas,
4) … mas ele também a amava.
Em Ficção Científica: Um Caso Perdido – com Exceções, Lem defende seu gênero com as seguintes palavras:
Sem dúvida alguma há uma diferença entre a ficção científica e todos tipos próximos, muitas vezes relacionados, de literatura trivial. Ela é uma vadia, mas uma vadia bem encabulada naquilo que faz. Ela se prostitui, mas, como a Sônia Marmeladova de Dostoiéviski, o faz com desconforto, repulsa, contrariamente aos seus sonhos e esperanças.
Sim, é difícil acreditar que um autor que compara seu gênero a uma prostituta deseje elogiá-lo. Lem, no entanto, tem algo bem específico em mente.
Para ele, a ficção científica não é apenas uma entre tantas literaturas “de gênero”, como o mistério ou chick lit. Ela é algo mais, entalada entre os mundos do erudito e do popular, desconfortável em ambos.
Solaris é uma rara obra que circula por ambos universos. A sensibilidade e a beleza de sua prosa o aproximam dos grandes mestres. Suas inovações temáticas e erudição científica representaram um divisor de água para o sci fi.
É um golpe de justiça poética a melhor adaptação cinematográfica de sua obra tenha se tornado um marco do cinema-arte.
Se Lem flertava com o pulp (mesmo que em uma relação abusiva), Andrei Tarkovksy, sempre se comportou como uma autoridade. Com quase três horas de duração, seu filme é difícil, filosófico – e, acima de tudo, autoral.
O que mudou?
É difícil não imaginar que o cinema tenha exercido um papel.
De Viagem à Lua e Metrópolis a Gravidade e Interestelar, passando por 2001 e pelo próprio Solaris, a ficção científica não só foi bem aceita na sétima arte, como rendeu alguma de suas maiores obras-primas.
O aporte visual com certeza ajudou. Libertados das páginas, os mundos fantásticos de autores como Lem proveram a cenógrafos, figurinistas, experts em efeitos visuais a tela com que provar sua arte ao mundo.
É provável também que tenhamos aprendido a ver tais histórias de um jeito diferente.
Como diz a autora Marie-Laure Ryan, as sutilezas da narrativa são a alma da literatura, mas não necessariamente pré-condição para arte. Dos libretos de ópera ao ballet, não há falta de histórias simplórias no mundo da arte. Nem por isso seus méritos são questionados.
Narrativas podem ser fins em si, mas também meios para um fim. Formas de nos transportar por ideias, para digerir conceitos complexos (relatividade, não-linearidade, os limites da ciência) em uma maneira fácil de entender.
A ficção científica está em seu melhor quando cumpre essa proposta. Graças a Lem (entre seletos outros), ela pôde transcender seu nicho e sacudir o mundo.
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