Grande sucesso da temporada, Kuzu no Honkai tem colecionado elogios por nos apresentar uma história que não vemos todos os dias: um antirromance.
Enquanto que muitos autores nos trazem amores açucarados e previsíveis, o anime se destacou por trazer personagens imperfeitas, em relações que trazem mais dor que felicidade. Um balde de água fria em um gênero marcado pela idealização.
Antirromances podem ser raros no mundo da anime. Porém, como todos que passaram por uma grande decepção sabem muito bem, amores tóxicos e angustiantes existem desde que o mundo é mundo.
Não é de se esperar, portanto, que já tenham inspirado incontáveis histórias.
Se você ficou fascinado pela mescla de desejo, sonhos despedaçados e amadurecimento de Kuzu no Honkai e está atrás de obras parecidas, abaixo vão quatro livros que retratam o amor jovem como ele muitas vezes é: triste, enlouquecedor e sexual.
Norwegian Wood – Haruki Murakami
– Há pessoas que conseguem abrir seus corações e pessoas que não conseguem. Você é um dos que conseguem. Ou, mais precisamente, você conseguiria se você quisesse.
– O que acontece quando as pessoas abrem seus corações?
Cigarro pendurado entre os lábios, Reiko juntou as mãos sobre a mesa. Ela estava curtindo aquilo.
– Elas saram.
No Ocidente, Haruki Murakami é conhecido pelos seus livros surrealistas. No Japão, foi esse o romance que o lançou de vez ao estrelato.
Norwegian Wood é a história de jovens recém-saídos da adolescência. Ou, melhor dizendo, chutados escada abaixo ao mundo adulto.
Toru Watanabe e o casal Naoko e Kizuki eram melhores amigos no colégio, até Kizuki misteriosamente cometer suicídio. Prestes a entrar na faculdade e descobrir as alegrias da vida, Toru e Naoko desenvolvem uma relação de confidência, culpa e desejo reprimido.
Dividido entre os traumas do passado e a euforia da vida universitária, Toru se flagra em um triângulo amoroso entre Naoko e a excêntrica Midori, uma garota extrovertida que ameaça virar sua vida de ponta cabeça.
Haruki Murakami é um dos melhores escritores do Japão, e Norwegian Wood deixa isso bem claro. Transbordando de sinceridade, o romance aborda o drama de jovens que não sabem se amam, não sabem se querem amar, mas precisam de algum afeto nesse mundo louco em que vivemos.
Há Nagasawa, o bon vivant que se gaba de ter dormido com mais de 70 garotas. Há Naoko, que como Hanabi de Kuzu no Honkai sente que o corpo não está em sintonia com sua libido. E há Toru, que como tantos outros homens, fica dividido em criar sua felicidade e “salvar” uma garota perdida.
Norwegian Wood é uma leitura triste, mas de uma tristeza que nos faz sorrir e apreciar melhor a vida. Direto, acessível e pé-no-chão, é um dos melhores romances contemporâneos sobre amadurecimento e despertar sexual.
Uma Outra Educação – Lynn Barber
Mas houve outras lições que Simon me ensinou que eu me arrependo de ter aprendido. Eu aprendi a não confiar nos outros; aprendi a não acreditar no que eles dizem, mas em observar o que eles fazem; aprendi a suspeitar que qualquer pessoa, toda pessoa, é capaz de “viver uma mentira”. Eu passei a acreditar que as outras pessoas – mesmo quando você acha que as conhece bem – são, em última medida, desconhecíveis.
Ao contrário dos outros livros da lista, Uma Outra Educação não é um romance, mas um livro de memórias. Na verdade, um capítulo de um livro de memórias.
Não deixe isso desanimá-lo. A história da adolescência de Lynn Barber é tão inusitada que parece uma obra de ficção.
Lynn é uma adolescente filha de pais caxias, que estudava em um colégio tradicional e sonhava em entrar em Oxford. Sua vida maçante toma uma curva vertiginosa quando conhece Simon, um adulto charmoso que a introduz ao sexo e à vida boêmia.
Lynn é apresentada a um mundo com o qual até então nunca sonhara: filmes estrangeiros e concertos, restaurantes chiques e fins de semana em Paris. Nem mesmo a carolice de seus pais resistiu ao charme do namorado. Simon era de uma simpatia hipnotizante, e arrebatou sua família com a mesma facilidade com que tomou seu coração.
Tão simpático era, na verdade, que demorou para que Lynn percebesse que alguma coisa estava errada.
Quanto mais o conhecia, menos sua façada de bom-mocismo fazia sentido. A garota descobriu que ele era um vigarista profissional, vivendo de golpes e desencontros com a lei.
Até que ponto podia confiar em tal sujeito? Seria seu namoro, também, um faz-de-conta elaborado?
Uma Outra Educação é o cenário distópico do que aconteceria a Mugi e Hanabi se seguissem às últimas consequências suas paixonices pelos professores.
Lynn Barber, no entanto, conta sua história com tanto bom humor e leveza que transforma sua tragédia pessoal em uma comédia de erros.
Perspectiva é tudo. Se histórias de formação geralmente são contadas pelos olhos de adolescentes – ou, pelo menos, de adultos saudosos da adolescência – Barber é uma jornalista sexagenária, que trabalhou para a revista masculina Penthouse.
Com maturidade de sobra e papas na língua de menos, ela nos mostra que o mundo é cheio de manipuladores, mas que mesmo o pior dos ardis é, em si próprio, uma educação.
Aos interessados, o livro foi adaptado a um excelente filme em 2009, com o roteiro escrito por ninguém menos que Nick Hornby, de Alta Fidelidade e Um Grande Garoto.
Amor sem Fim – Scott Spencer
Tudo o que poderíamos ter dito é que você e Jade ainda não estavam prontos, de certa forma, para os prazeres da carne. Mas como nós poderíamos dizer isto quando estávamos praticamente loucos de inveja de seu amor um pelo outro? Vocês eram todos as nossas fantasias românticas subitamente encarnadas; negar vocês teria sido como negar a nós mesmos.
Amor sem Fim começa pegando fogo. Literalmente.
Proibido de ver sua namorada, o adolescente David resolve atear fogo em sua casa. Seu plano? Fingir que estava apenas de passagem, salvar sua família das chamas e readquirir o direito de vê-la.
Sua artimanha cai por terra tão cedo é colocada em prática. David é enviado a um hospital psiquiátrico, onde permanece por vários anos.
Quando é liberado, tenta reencontrar o amor de sua vida. Mal sabe ele que da sua paixão só virão mais tragédias – para ele e para aqueles ao seu redor.
Amor sem Fim é para os romances o que Oyasumi Punpun é para os mangás. Trata-se da história de um jovem que vê seu amor de juventude degringolar em uma espiral de perdas, morte e auto-destruição.
Como na obra-prima de Inio Asano, o sexo é apresentado de forma gráfica e chocante. Que Scott Spencer tenha conseguido juntar tudo isso em uma história tão bela é prova de sua habilidade como escritor.
Ao contrário do que sugere o título, o romance não é uma história sobre amor, e sim obsessão. Obsessão, porém, de um protagonista tão crente em seu próprio delírio que acaba por nos arrancar simpatia.
Grande parte dos “antirromances” nos trazem personagens que não se amam de verdade. Kuzu no Honkai não é uma exceção. Amor sem Fim, no entanto, nos mostra o que acontece quando se ama em excesso.
Há um quê de atraente na devoção de David, e é isto que faz da sua história apavorante. No fundo, no fundo, todos já desejamos matar ou morrer por paixão.
Bestseller na época em que foi lançado, o livro de Scott Spencer foi criminosamente esquecido com o passar dos anos. Duas adaptações horríveis ao cinema mancharam sua reputação com o grande público. No Brasil, sua edição está há muito esgotada.
Felizmente, em tempos de Kindle e Estante Virtual, o erro pode ser finalmente remediado.
A Instrução dos Amantes – Inês Pedrosa
Dinis era triste como os outros são bonitos ou feios. Antes fosse mau, porque a maldade é uma deliberação da vontade, uma reacção à ferida própria dos grandes amantes. A tristeza, quando se apresenta assim de raiz, provoca danos irreparáveis. Porque a tristeza tem um único antídoto de sobrevivência, que é a crueldade.
A Instrução dos Amantes nos mostra um “erro” logo de início. Cláudia apaixona-se por Dinis no funeral da amiga Mariana, que todos pensam ter se suicidado.
Romance de estreia da portuguesa Inês Pedrosa, o livro acompanha um grupo de adolescentes perdidos, encontrados e ludibriados pelo primeiro amor.
Ricardo é o líder cobiçado de um grupo de bad boys (e bad girls). Cláudia é sua namorada, mas não o ama. Dinis, por quem perde a cabeça, é um intelectual blasé que aceita seu corpo, mas desdenha seu amor. Teresa, perdida nos confins da friendzone, ajuda os outros a desencalharem enquanto sonha com seu príncipe encantado.
Se Norwegian Wood e Amor sem Fim trazem à toca as mazelas de Mugi, Hanabi e Akane, A Instrução dos Amantes é sem dúvida o livro de Moca.
Mais inocentes (e um tiquinho mais novos) que os jovens de Murakami e Spencer, as personagens de Pedrosa sofrem a descoberta de que pensar sobre o amor e vivê-lo são duas coisas bem diferentes. Nem sempre conciliáveis.
Como Lynn Barber, Pedrosa encara o amadurecimento como um aprendizado. Mais do que a autora inglesa, no entanto, ela nos mostra como esse processo deixa marcas.
Nas palavras de um crítico português, sua instrução é uma ferida que deixa cicatrizes. Crescer implica em levar tombos e ver nossos sonhos rolarem pelo asfalto. Saímos da experiência mais forte, mas um pouco ralados.
Inês Pedrosa é uma escritora bem portuguesa, e seu livro está recheado de gírias do Velho Continente. Se palavras como “rapariga”, “rezingona” e “goínha” não atrapalharem sua suspensão de descrença, A Instrução dos Amantes não falha em ser uma leitura surpreendentemente agradável.
Embora falem de assuntos parecidos, esses quatro livros possuem muito pouco em comum. Seus autores nasceram e viveram em países diferentes. Como artistas, suas prioridades não poderiam ser mais distantes.
Montando essa lista, no entanto, não pude deixar de perceber uma coisa: as quatro histórias se passam nos anos 1960 e 1970. Justamente a época da Revolução Sexual
A historiadora Mary del Priore, que citei em outro artigo, parece ter razão. A liberdade amorosa trouxe consequências para nossos relacionamentos que nos perseguem até hoje. Nem sempre, esses romances nos mostram, da forma como imaginamos.
Boa lista! Mas meu comentário é sobre a hipótese-conclusão do final do artigo (sou bom nessa coisa de comentar sobre lateralidades):
Tendo a acreditar em você (e na historiadora citada), mas penso se não pode ser o contrário: relacionamentos tóxicos e dificuldades durante o despertar da sexualidade sempre existiram (como você mesmo diz nesse artigo), talvez eles apenas não fossem muito comentados e não gerassem muita arte antes da liberação sexual. Ela removeu as amarras não só das nossas genitálias afinal, mas de nossas bocas também.
Acho que geravam sim. Das novelas de cavalaria ao romance realista, há toda sorte de sátiras, denúncias e lamentos sobre relações disfuncionais na história da literatura. A ideologia moralista da família, monogamia e virgindade nunca impediu que as pessoas explorassem sua sexualidade – nem escrevessem sobre isso. Prova: existe literatura pornográfica medieval!
O que me parece é que o “excesso de liberdade” , se posso colocar assim, gerou angústias particulares. Claro, ele também permitiu que angústias “antigas” (impotência, frigidez, orientação sexual reprimida) pudessem ser aeradas.