Um bilhão de dólares.
Essas são as cifras da bilheteria de Rogue One, stand-alone de Star Wars que chachoalhou os cinemas mês passado. Entre isso e o sucesso de público de O Despertar da Força, parece não haver dúvidas de que a aposta da Disney em comprar a Lucasfilm finalmente pagou.
Independente do que achemos dos longas pós-Lucas (ou do que aconteceu ao Universo Expandido), parece também certo que a Disney está indo bem naquilo que sempre fora um ponto fraco: spin-offs de qualidade.
Mas Rogue One não é apenas isso. Para alguns críticos, ele traz algo diferente. Algo que Star Wars, pelo menos no cinema, nunca havia feito.
A palavra aqui é cinza. Reviewers comentaram que o filme abriu mão do maniqueísmo típico da saga e se aventurou pela moralidade ambígua.
O filme seria “cinza e eficiente“, com uma Aliança Rebelde cinza, uma trama com “tons de cinza“, mais “adulta e trágica” que a trilogia original. Se Star Wars prosperava na luta do bem contra o mal, Rogue One “coloca a “guerra” em “Guerra” nas Estrelas“
Amando-o ou odiando-o, o veredito é o mesmo. Os tempos mudaram, o público mudou e agora Star Wars muda também. A moral infantil dos “tempos simples” de antigamente já se foi. Está na hora de mostrar a guerra, a dor e a humanidade como elas realmente são.
Ou será mesmo?
Por trás da sua fotografia escura, final trágico e ausência de Jedi, seria Rogue One tão diferente assim? Um tom sombrio e um foco no humano é o suficiente para que uma história seja “moralmente cinza”?
E nós? Será que realmente crescemos e estamos “trágicos e adultos”? Ou continuamos tão esperançosos como antes, maravilhados com a luta do bem contra o mal?
(AVISO: Contém SPOILERS de Rogue One: Uma História Star Wars.)
Uma história Star Wars
Quem acompanha o blog há algum tempo sabe que meus comentários sobre O Despertar da Força não foram lá muito positivos. Neste caso, deixe eu ser claro desde já: Rogue One é um excelente filme.
O longa de Gareth Edwards conseguiu pagar seu tributo à saga sem soar derivativo. Seu tom é sombrio, mas temperado com humor. O talento dos veteranos Mads Mikkelsen e Forest Whitaker mais do que compensam a protagonista pouco inspirada.
É um filme de grande peso emocional, do tipo que Lucas, amante do espetáculo e de uma lore expansiva, nunca deu muito espaço. É, também, uma obra que a Disney raramente fez em seus live-actions.
Fora do recente selo Marvel (e mesmo dentro dele), o estúdio americano sempre teve uma zona de conforto na leveza infanto-juvenil. Que um gigante midiático como a Disney esteja dando espaço para histórias como essa é um acontecimento. Não apenas para Star Wars, mas para tudo o que pode vir depois.
A fotografia é escura. A sujeira e desgaste da cenografia levam o conceito de futuro usado, caro a George Lucas, a um novo patamar. O enredo troca o mito de origem por uma história de soldados, e o final nos traz apenas tragédias.
Moralidade “cinza”? Ou só escondida?
Mesmo assim, se o avaliarmos como um filme adulto, alguma coisa não soa muito certa. E não digo em termos de produção (reconstruções bizarras em CG à parte).
Algo em sua seriedade parece artificial: por um lado, óbvia demais; por outro, explorada de menos. E parece ter a ver com a insistência, da crítica e do próprio diretor, na famosa moralidade cinza.
O termo é geralmente utilizado como oposto à moral “preta e branca”. que a saga original tão bem encarna. Os bons são bons, os maus são maus, e a história é o confronto de um contra o outro. Que os “do bem”, se tudo der certo, ganharão.
Histórias são chamadas de “cinzas” quando as linhas que separam o bem do mal não estiverem muito claras.
Isso pode acontecer quando humanizam um vilão ou desumanizam um herói. Quando mostram que “bem” e “mal” não existem em formas puras. Ou, ainda, quando se rebelam contra a própria ideia de moralidade.
Ao tirar a Alliança Rebelde do seu pedestal de idealismo, Rogue One parece acenar para esse tipo de história.
O retrato de Saw Gerrera é talvez o símbolo mais evidente. Ao nos mostrar um conhecido herói de universos expandidos passados como um bandido, o filme sugere que a distância entre “heroísmo” e “terrorismo” está no fio de uma navalha.
Mesmo assim, Rogue One tem um certo brilho que sugere que não é lá tão cinza quanto parece.
Ouvir os rebeldes falarem das “coisas ruins” que fizeram em nome da aliança mostra que eles não são mais os heróis infantis de Uma Nova Esperança. Mas a cena tem muito menos impacto do que teria se nos mostrassem o que, exatamente, eles fizeram.
A introdução de Cassian matando um informante é chocante, mas também limpa, clínica. A vítima é menos um ser humano que um NPC inconveniente, que seu personagem Leal e Neutro executa aborrecido -para, depois, seguir com sua quest.
Não se trata de violência gráfica, mas de escala. Como dizia Nietzsche, “quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.”. Em Rogue One, fazer o mal em nome do bem não causa as personagens a perderem fé na sua causa. Pelo contrário, apenas as motiva a serem mais heroicas.
É engraçado, nesse sentido, o quão diferente ele é das obras “adultas” e “sérias” com as quais foi comparado, como Falcão Negro em Perigo e O Resgate do Soldado Ryan.
Confronte apenas a postura de Cassian em Rogue One com a cena do prisioneiro alemão no filme de Spielberg, em que os protagonistas passam horas pensando se devem ou não matar um soldado nazista. Em plena Segunda Guerra.
Quem é o maniqueísta agora?
É o mesmo conflito do capitão de A Vida dos Outros, que de tanto grampear um suspeito, acaba traindo a polícia política para a qual trabalha. Ou do terrorista de Convidados da Nação, ao ter de executar os reféns de quem ficou amigo.
Em Rogue One, apenas Galen e Bodhi passam por essa metamorfose. Mas o Império, já sabemos, é o “lado” dos malvados. E virar a casaca contra os malvados é o que é esperado dos bonzinhos.
Não há nada de “complexo” em sua defecção. É uma cena que já vimos com Finn em O Despertar da Força e melhor ainda com Darth Vader em O Retorno de Jedi.
O problema é que, ao misturar esses dois mundos, o resultado nem sempre é harmonioso.
‘Cinza’ não é sinônimo de adulto
Em Rogue One, na cena do tiroteio em Jedha, vemos uma criança asiática chorando no meio dos lasers. É difícil ver a cena sem pensar em Phan Thi Kim Phuc, a sul-vietnamita queimada por napalm cuja foto mudou o mundo:
É uma imagem fortíssima, que nos entender que guerras não são lutas entre clones e dróides bobalhões. Não é à toa que fotos de crianças sempre são usadas (e abusadas) em mensagens pacifistas.
É também uma diferença gritante em relação ao que estávamos acostumados, nos longínquos tempos de George Lucas.
Star Wars nunca escondeu que a inspiração de seus vilões foram os nazistas. O próprio termo stormtrooper (stoßtruppen) veio do apelido das tropas de elite alemãs. O capacete de Darth Vader é inspirado no stahlhelm, usado por elas desde 1916.
Rogue One parece ter buscado referências mais “cinzas” para sua guerra. O problema é se esqueceu do porquê essas imagens são consideradas “cinzas.”
Phan Thi Kim Phuc (processe isso!) foi bombardeada pelo seu próprio “lado”. O objetivo da sua foto – e de tantas outras fotos de crianças em guerra – não foi pregar que deveríamos lutar com mais afinco. Pelo contrário, foi mostrar que a cruzada dos “bonzinhos” (Vietnã do Sul e Estados Unidos) estava causando mais mal do que bem.
No formato, Rogue One emprestou de histórias cuja proposta era nos fazer repensar a guerra. No conteúdo, porém, ele as colocou a serviço de uma mensagem oposta, celebrando a mesma luta do “bem” versus “mal” com que vibramos em Uma Nova Esperança.
Os críticos estão certíssimos ao dizer que o longa trouxe a “guerra” a Guerra nas Estrelas. Só não qualquer “guerra”. Como bem apontou a revista Time, é a guerra de Labaredas do Inferno e Canhões de Navarone, filmes heroicos e patrióticos que celebram a “guerra justa”.
Obviamente, é injusto esperar diferente de Rogue One.
O longa de Gareth Edwards pode mirar um público adulto, mas ainda é um filme da Disney. Esperar um festival de vísceras como Até o Último Homem é não entender a proposta do estúdio – nem do próprio universo Star Wars.
No entanto, também não consigo afastar a impressão de que há algo a mais por trás disso.
E se a esperança que fechou Rogue One for não apenas uma exigência editorial, mas um reflexo dos nossos tempos? E se o preto-no-branco que Rogue One tenta esconder estiver lá de propósito, para atender a uma demanda por uma moralidade adulta, mas também simples e justa?
Para responder isso, é preciso nos lembrarmos de quando o universo Star Wars seguiu caminhos bem diferentes.
Knights of the Old Republic: The Sith Lords
Ao leitor contrariado: não me odeie, não é o que parece. Prometo que não sou daqueles que coloca tudo do velho Universo Expandido num pedestal.
Porém, é inegável que o game KotOR 2: The Sith Lords também trouxe moralidade cinza ao universo Star Wars – só que de uma maneira bastante distinta. Com a Velha República voltando ao cânone e easter eggs aos jogos em tomadas de Rogue One, é interessante ver o que isso nos diz sobre a saga.
Knights of the Old Republic 2 se passa milhares de anos antes da Guerra Civil Galática, quando a República está se recuperando de uma terrível guerra contra os mandalorianos.
O conselho Jedi se recusou a tomar parte na guerra. Dois cavaleiros, Revan e Malak, se recusaram a obedecer a ordem e lideraram à guerra um grupo de voluntários.
No entanto, bastou os mandaloriano serem derrotados para que eles próprios sucumbissem ao lado negro. E invadissem a República em uma guerra ainda pior.
KotOR 2 se passa após o final desses conflitos. A galáxia se encontra em pedaços. Os Jedi foram quase todos mortos, e os poucos que sobreviveram andam escondidos, protegendo-se do restante dos Sith.
O game acompanha uma Jedi exilada que retorna aos planetas centrais. Entre conspirações, lutas de sabre e batalhas espaciais, sua história é uma reflexão sobre um dos maiores dilemas que a Ordem já se perguntou:
A culpa é dos Sith? Ou fomos nós que erramos?
Se todos esses Sith foram treinados por nós, será que o problema não estaria na própria Ordem? Ao forçar seus cavaleiros a abrir mão do amor, sentimentos fortes e outros impulsos humanos, não estaria ela incentivando seus membros a migrar para o lado negro?
Se os ensinamentos Jedi não contemplam essas falhas, não seria ele o grande culpado? Pode o “jedaísmo utópico” se eximir das atrocidades que o “jedaísmo real” cometeu?
KotOR 2 é muito mais um jogo autoral da Obsidian do que um game Star Wars. Em retrospecto, é possível ver o germe do que viria a ser Fallout: New Vegas, Pillars of Eternity e o excelente Tyranny. Uma discussão franca sobre a complexidade do mundo – e dos limites das nossas bitolas de “bem” e “mal”.
É até curioso que desenvolvedores com essas opiniões fossem se interessar por uma lore tão maniqueísta como a do universo Star Wars. E compreensível por que colocaram nas bocas de uma personagem, Zez Kai-Ell, uma pergunta espinhosa não só para os Jedi, mas para todos nós:
Do fracasso dos mestres, do nosso fracasso em trainar Jedi corretamente veio o desastre. E eu comecei a pensar se o erro, no final das contas, não estava nos próprios ensinamentos Jedi. (…) Entre tudo o que realizamos para preservar a galáxia, de tamanha arrogância de achar que tudo o que fazemos é justo e bom, eu me pergunto se não existe um contra-efeito que volta para nos atingir. (…)
Nem uma mísera vez eu ouvi alguém do Conselho se responsabilizar por Revan, por Exar Kun, por Ulic, por Malak… ou por você. Talvez haja alguma coisa errada em nós mesmos, em nossos ensinamentos. E, por mais que eu tentasse, não conseguia me livrar desse pensamento. Por isto abandonei o Conselho.
KotOR 2 não questiona nossos métodos, mas nossas intenções. O game nos lembra que nem sempre estamos certos – e que as causas que defendemos, muitas vezes, podem ser a verdadeira raiz do mal.
É um ponto que Rogue One, por mais sombrio que seja seu clima, passa longe de abordar.
Saw Gerrera é um terrorista torturador. Cassian Andor, um assassino de sangue frio. No entanto, não há a menor questão que pessoas como eles são preferíveis a um Império que destrói cidades com a casualidade de quem espreme uma espinha.
Rogue One é um filme adulto, sem dúvida. Porém, atrás da fotografia pesada, sua moralidade continua tão dicotômica quanto a fábula que o inspirou. Como bem disse um crítico, a Aliança se tornou cinza, mas o império continua negro.
O que isso nos diz sobre nós mesmos?
Numa entrevista sobre Rogue One, seu diretor Gareth Edwards fez o seguinte comentário:
Quando eles fizeram Star Wars nos anos 1970, o mundo talvez se sentisse um pouco mais simples: aqueles são os malvados, nós somos os bonzinhos. Hoje – com a internet e a conexão global – nós sabemos lá no fundo que não é tão simples assim. Antigamente, quando você vencia, você acabava com o malvado. Isto nunca vai levar a paz nenhuma. Eu acho que nós só vamos conseguir acabar com a guerra quando entendermos um ao outro e tivermos empatia.
Belas palavras, mas Edwards não parece ter combinado com o resto da equipe. Pouco antes do filme ser lançado, os roteiristas Chris Weitz e Gary Whitta causaram no Twitter ao anunciar o filme como um ato de resistência contra a candidatura Trump.
A polêmica foi tão grande que levou o CEO da Disney, Bob Iger, a se manifestar publicamente dizendo que o filme é completamente apolítico.
Não há a menor dúvida de que Weitz e Whitta acreditam que representam o “bem” e que o inimigo contra o qual lutam é o “mal”. Na sua “luta justa”, é muito mais provável que assumam a certeza de Jyn Erso do que o pessimismo de Zez Kai-Ell.
E não só eles. Com mensagens vagas como “rebeliões são feitas de esperança”, é difícil não simpatizar – em algum nível – com a guerra moral que a Aliança trava. Todos nós somos rebeldes contra alguma coisa e precisamos de esperança para ir em frente.
Rogue One, diz o Charles do Cosmo Nerd, carrega uma mensagem. “Não importa qual princípio guie seus passos, é preciso acreditar que você está no caminho certo.” Não podia estar mais certo.
Mas e se esse “princípio” que nos guia for, por exemplo, a manutenção da escravidão? A repressão colonial? O apoio a um governo tirano?
E se o “caminho” que achamos certo se provar um fracasso? E se nossa cruzada causar mais danos do que o mal contra o qual lutamos?
É o dilema que assombrou os confederados após a Guerra Civil Americana, os italianos após a Primeira Guerra Mundial, os franceses na Guerra da Argélia e os americanos no Vietnã.
É o dilema que Star Wars, lançado dois anos depois da queda de Saigon, quis esconder ao inaugurar o cinema blockbuster. E de que nós, após décadas de prosperidade, escapismo e alegria, nos esquecemos.
Mas talvez seja para o melhor.
Ao contrário do que Edwards acredita, os anos setenta passaram bem longe de ser simples. A Guerra Fria dividia o mundo, e suas consequências – o Vietnã, as ditaduras, a Crise dos Reféns do Irã, o possível holocausto nuclear – tiravam o sono de muita gente.
Star Wars conquistou seu espaço ao convidar essas pessoas para um outro mundo. Aterrorizadas em casa, elas ganharam um universo paralelo onde podiam sonhar, pensar e – sim – ver o bem derrotar o mal.
Tal como fez a poesia desde a antiguidade e o ballet no século XIX, Star Wars trouxe ao século XX “uma nova esperança”, na forma de uma fantasia otimista, ordenada e atemporal.
Não é à toa que sobrevive forte nos dias de hoje. E que, segundo alguns, durará para sempre.
Perto disso tudo, não dá para negar: moralidade cinza é overrated.
Comentários