Nijigahara Holograph, de Inio Asano, é um soco no estômago.
Com uma narrativa não-linear, temas pesados, usos e abusos do “show, don’t tell”, o mangá, que chegou ao Brasil recentemente, é um clássico cult de cair o queixo.
Para a mente acostumada a obras serializadas ou one-shots quadradinhos, é também uma história que nos faz sentar direito na cadeira, franzir o cenho e pensar:
O que, afinal, acabamos de ler?
Não é meu lugar dizer por que o quadrinho de Asano é imperdível. Várias excelentes reviews, escritas antes do lançamento da obra no Brasil, já fizeram esse trabalho.
Esse post fala de algo além. Dos caminhos tortuosos que o mangá toma para nos passar sua mensagem. E de porque estas escolhas fazem dele uma obra tão única – e tão confusa.
Não se trata apenas de entender seu enredo. Aos curiosos, há na internet linhas cronológicas comentadas, para que leitores perdidos consigam decifrar “tudo o que aconteceu”, para além da overdose de estilo de seu autor.
Porém, como aqueles que já leram ou folharam o mangá aprenderam do jeito difícil, conhecer a trama ajuda muito pouco. Nijigahara Holograph não é uma obra de enredo mais do que de linguagem. Seus cortes narrativos, saltos temporais e mensagens vagas são tão responsáveis por transmitir sua “história” quanto os balões de diálogo.
Felizmente para nós, por trás de toda essa invencione há uma narrativa bem clássica, com fórmulas conhecidas e uma longa tradição que todos, sabendo ou não, conhecem. Para descobri-la, é preciso dar uma volta pelo mundo dos romances… e do cinema.
O holograma do campo de arco-íris
Antes de mais nada, um contexto aos perdidos:
Nijigahara Holograph é um mangá de Inio Asano publicando em 2003 e recém-lançado no Brasil pela JBC. Sua história acompanha um grupo de jovens e adultos de uma escola, assombrados por uma sucessão de tragédias.
A narrativa é acronológica. Entremeada por flashbacks, ela nos mostra como, durante mais de uma década, atos de crueldade, traumas e culpas mudaram irreversivelmente suas vidas.
O que os une é o campo de Nijigahara, onde vivem seus momentos mais dramáticos – e que guarda mistérios que os obrigarão a encarar sua própria natureza.
Os detalhes vêm as poucos, e a verdadeira dimensão do horror é algo que o leitor monta em sua própria cabeça na medida em que lê.
Akie é uma jovem em coma. Seus colegas de sala tentaram matá-la jogando-a em um buraco. Suzuki é um garoto perdido, que em dado momento se atira da janela da escola. Maki é uma garota atormentada por ter colaborado com a tragédia de Akie. Kyoko é uma professora desfigurada, agredida após flagrar o estupro de uma aluna.
Se não dou mais detalhes é porque esse é o tipo de história que não permite.
Nijigahara Holograph é um grande quebra-cabeças. Cada página conecta uma peça, e o que parecia a princípio um conto surreal se mostra um retrato complicado, seco e emocionante da crueldade humana.
Nada por acaso. Nijigahara Holograph nos mostra um jeito de contar histórias muito específico, com uma longa tradição no cinema e na literatura.
Mais do que isso, uma fórmula que está na origem do próprio romance.
A narrativa de rede
Narrativas de rede, como o nome já diz, são histórias focadas nas relações entre diversas pessoas. Ao contrário de enredos tradicionais, que acompanham um ou mais protagonistas, estas tramas priorizam os laços entre as personagens – muitas vezes, às custas do desenvolvimento pessoal de cada uma.
O estilo tem vários nomes. Manuais de roteiro (e a Wikipédia) os chamam de ensemble cast. O grande crítico Roger Ebert os chamava de “filmes de hyperlink”.
Mesmo que nunca tenha ouvido esses nomes, você com certeza já assistiu a algum deles. A fórmula pode ser vista em incontáveis filmes, de Crash a Love Actually; de Amores Perros a Babel, de Magnólia a Medos Privados em Lugares Públicos.
Para quem tem familiaridade com a obra do Asano, não há aqui nenhuma novidade. Como já comentei em um artigo dedicado a ele, o autor de Oyasumi Punpun é um dos mangakás mais deliberadamente “cinematográficos”.
Sua quadrinização lembra um storyboard. Seus cenários são desenhados a partir de fotos reais. Suas páginas levam indicações de trilha sonora.
Não é à toa que a Roberta Caroline do Elfen Lied Brasil comparou o mangá a Crash, nem que o tenha chamado de história de “efeito borboleta”. A imagem está tão enraizada nos ensemble casts que já ganhou até referência direta.
O título original de Happenstance (2000), ensemble cast com a Audrey Tautou, é literalmente Le Battlement d’Ailes du Papillon (o bater das asas da borboleta).
As datas dos filmes não mentem. A narrativa de rede ficou popular justamente quando a “rede social” se tornou a deusa-cadela da nossa época. Com a globalização, a ideia de que nossos destinos estão ligados aos de pessoas que nem conhecemos se tornou sabedoria comum.
Não pensem, porém, que isso é tudo coisa nova. Como lembra o crítico David Bordwell, ensemble casts são escritos desde o surgimento das primeiras “redes” (as cidades) e estão na raiz do romance contemporâneo.
Guerra e Paz e Les Misérables, a princípio, não parecem ter muito a ver com efeitos borboletas – nem com Inio Asano. No entanto, a fórmula já está lá: vidas separadas, independentes, que se cruzam em conflitos comuns – depois dos quais jamais serão as mesmas.
Mas por que tudo é tão confuso?
Tudo isso é muito interessante, mas há uma pergunta que não quer calar: para que tanto trabalho?
Há mesmo necessidade de dividir uma história em quatro, seis, dez histórias interconectadas? O final vago, narrativa não linear, o surrealismo realmente acrescentam alguma coisa? Onde termina a sofisticação e começa aquela coisa “meio-cult à la Legião Urbana”, como brinca a Roberta do Elfen Lied BR?
Por incrível que pareça, há uma razão muito boa para se tomar o caminho menos óbvio. E não se trata apenas de ostentar habilidade, mas de explorar um de nossos sistemas de recompensa mais poderosos.
Como lembra David Bordwell (e como eu mesmo já disse aqui outras vezes) nosso cérebro sente prazer quando encontra padrões. Seja ver figuras em nuvens, builds em videogames ou mensagens subliminares em latas de Coca Cola, gostamos de enxergar soluções nas coisas mais aleatórias.
Ensemble casts têm um apelo grande porque combinam esse prazer com outra de nossas fissuras preferidas: a fofoca.
Não é preciso ser vidente para adivinhar o que os outros pensam. É algo que fazemos naturalmente, uma das razões pela qual nossa espécie veio a dominar o globo.
A Thais do Nave Bebop diz que o julgamento é tão presente em Nijigahara Holograph que poderia ser uma personagem própria. Não poderia ter mais razão. E o ensemble cast brilha quando faz com que nós, leitores, sintamos como se julgássemos e fôssemos julgados também.
É o que críticos de cinema chamam de exposição atrasada e distribuída.
Em vez de nos jogar a informação de uma vez, ou na ordem em que as coisas acontecem, algumas histórias brincam com nossa ignorância.
Às vezes, nos contam um segredo sobre as personagens que nem elas sabem. Em outras, nos escondem coisas elementares, fazendo com que comecemos a imaginar – e julgar – do ponto de vista de um recém-chegado.
Inio Asano faz isso com tanta frequência que Nijigahara Holograph parece um verdadeiro manual da técnica.
O mangá abre com a silhueta de uma menina com sangue entre as pernas. Imaginamos que ela foi estuprada, mas não as circunstâncias (nem mesmo seu nome!) Kyoko, a professora, possui uma atadura nos olhos, e nós sabemos, pela Arma de Chekov, que há uma história mórbida por trás do machucado.
As duas tragédias estão relacionadas, mas nós não descobrimos isso até o momento fatídico. Asano poderia ter nos contado de uma vez, mas isto nos pouparia do impacto: o desespero de ver seres humanos fazendo o seu pior e enxergar, em suas ações, ainda mais depravidade por vir.
Em outros momentos, somos nós quem temos a vantagem. Há um personagem que é um psicopata. Ele estupra uma garota da vizinhança, coloca fogo em sua própria casa, comete atos de violência contra todos à sua volta.
Nós acompanhamos sua trajetória cadáver a cadáver, crime a crime. Os personagens, seduzidos pelo seu carisma, não. Para nossa angústia, que esperamos impotentes ao inevitável acontecer.
Pode parecer fácil na teoria. Quem já se aventurou na ficção, contudo, sabe que fazer as coisas “clicarem” é uma verdadeira proeza.
Por que os episódios estão fora de ordem?
Ensemble Cast são histórias sobre o acaso. Sobre como o destino não só “joga dados”, como parece ter um senso de humor: nos deixar perdidos, sem rumo, desesperados.
A questão, como sempre, é que o que funciona na realidade nem sempre funciona na ficção. Para cada grande momento de crise ou superação, temos incontáveis horas de tédio. Para cada dia que parece decisivo, há anos e anos de vida sem sentido.
Organizar tudo isso em um arco interessante já é complicado. Fazê-lo mantendo o suspense e a angústia – em várias histórias simultâneas – é trabalho de mestre.
Isso não é um problema para romances, que podem nos segurar pela mão e dedicar dezenas de páginas para amarrar todas as pontas. Em narrativas mais curtas, no entanto, é necessário usar alguns truques.
Alternar a ordem cronológica é o jeito mais fácil de produzir esse efeito. É bem difícil provar que as vidas de um grupo inteiro de pessoas estão conectadas. Ao tratar suas histórias como um mosaico e combinar as peças do jeito que preferimos, damos uma aparência de ordem ao caos.
Nijigaha Holograph faz isso a todo momento – não por acaso, em seus episódios mais marcantes.
Do começo ao fim, as personagens são visitadas por borboletas.
Seria apenas coincidência? Uma jeito do autor de “marcar” as cenas importantes? A consciência de um fantasma ou “espírito” guiando essas pessoas à salvação? Uma referência batida ao “efeito borboleta”?
A resposta demora a chegar, mas sabemos desde cedo que os insetos são importantes. Um colar no formato de suas asas se torna um Macguffin fundamental. Em momentos-chave, personagens se “desfazem” em borboletas.
Em uma “gambiarra” ainda mais criativa, o garoto Suzuki tem encontros reveladores com duas personagens mais velhas. Apenas no final da história descobrimos que elas nada mais são do que ele próprio, em outras épocas da vida.
É apenas um “truque”, mas que transmite, ele próprio, uma grande verdade. O tempo pode ser linear, mas os grandes marcos da nossa vida ficam para sempre. Nós carregamos os traumas do nosso passado, assim como as esperanças para nosso futuro.
Todos nós, no fundo, vamos e voltamos a outras épocas, revisitamos decisões e fazemos planos. O ontem e o amanhã são fardos – de que, para viver no presente, temos de nos libertar.
O resultado é uma história que parece única e incrivelmente poética. O problema é que isto também faz com que fique complicada – e quase impossível de entender à primeira vista.
Pois Inio Asano não está satisfeito apenas em jogar a ordem cronológica no ventilador. Ele também anda na corda-bamba do fantástico, do sobrenatural e do nonsense inexplicável.
Ou seria mesmo?
Por que o místico e o surreal?
Por nada. Nijigahara Holograph não é fantástico. É um retrato ultra-naturalista da realidade nua e crua.
E não, leitor, eu não estou louco. Não estou implicando que um ser humano se desfazer em borboletas é uma coisa normal. Nem estou discordando da Roberta, quando diz que o mangá é fortemente inspirado no taoísmo.
Acontece que, como os antropólogos estão cansados de dizer, nós não vivemos apenas no mundo de carne e osso. Símbolos, mitos, fantasias e paranoias são reais à sua própria maneira.
Mais do que isso, são necessárias para que consigamos entender o que diabos se passa com aquilo em que tocamos, de fato, com as próprias mãos.
Narrativas de rede são caracterizadas pela ordem. Como vimos acima, sua malha de “hyperlinks” depende de uma série de truques para se sustentar. Truques que muitas vezes roubam os holofotes, culminando em odes à esperteza do autor mais do que em uma história bem contada.
Isso acontece porque a vida real é muito menos ordeira que a ficção. E não falo apenas de clichês ou da rule of cool, mas dos pressupostos fundamentais de qualquer história.
Na vida real, não existem mensagens, arcos de desenvolvimento ou justiça poética. Apenas um rolar desesperado de dados e a esperança de que o futuro seja menos horrível que o presente.
Não existem sequer “começos”, “meios” ou “fins”, só pontos arbitrários em que começamos ou paramos de narrar. Como bem disse um personagem de Mad Men, não existem “fresh starts”; a vida apenas segue em frente.
Narrativas “certinhas” nos parecem artificiais porque pressupõem uma ordem que não existe no mundo. Quando essa harmonia se torna muito evidente (como no caso dos ensemble casts) nós, condenados a penar no caos que realmente existe, achamos difícil simpatizar com elas.
Como aceitar que um assassino, sua cúmplice e o policial investigando o crime sejam, coincidentemente, ex-alunos da mesma turma?
Ou que a professora desfigurada se encontre de repente com uma antiga aluna, no exato momento em que ela começa a trabalhar para o homem que a desfigurou?
Coincidências existem, mas há um limite para tudo. Histórias muito convenientes são tão absurdas quanto narrativas desconjuntadas.
É o problema de tantas comédias românticas descartáveis, ou dos roteiros de procedurais para a televisão. Por trás de cada um deles há um ensemble cast sem alma, construído com frieza maquinal.
O surreal, o fantástico, o impossível conseguem passar algo que o mero relato dos fatos não consegue. Eles são capazes de retratar o caos, o acaso, todas as coisas que não entendemos e não sabemos direito descrever. Mas que, ainda assim, afetam nossas vidas.
Por mais incrível que pareça, o imaginário está lá porque parece mais real que a própria realidade.
No mangá de Asano, descobrimos que um velho túnel próximo a Nijigahara é assombrado por um monstro. Pouco sabemos a seu respeito, salvo que parece ter tido uma mão nas maiores tragédias a acometer o bairro.
Não demora para que notemos que os “atos” dessa suposta besta são bastante humanos. Pois ela não é um verdadeiro “monstro”, apenas uma ferramenta que essas personagens criaram para racionalizar sua crueldade.
Por isso que, em momentos diferentes, ele assume a figura de diferentes pessoas que tiveram seu fim próximo a Nijigahara:
Narrativas de rede, para funcionar, precisam desses pequenos absurdos. Pode ser algo sutil, como um acidente de carro com timing perfeito (Crash). Pode ser uma coisa poética, como uma mulher que “sobrevive” no instrumento pintado com seu sangue (Violino Vermelho). Ou ainda, com todo o didatismo das Escrituras, a “praga de sapos sobre toda a terra” de Êxodo 8:2. (Magnólia).
Não é à toa que a Thais Lara do Nave Bebop comparou o mangá de Asano com o seriado Twin Peaks, ele próprio um exemplo clássico de narrativa de rede.
Como disse seu diretor, David Lynch, o assassinato da adolescente Laura Palmer, argumento que move a trama, não passava de um pretexto para explorar as relações entre suas personagens: os habitantes da vila de Twin Peaks. Um microcosmo humano que ele traz à vida usando (e abusando) do surreal.
Para quem conhece Asano, de novo, não há qualquer surpresa. O mangaká é conhecido pelo seu cinismo em relação às “grandes fórmulas” da vida, que encontra sua expressão perfeita no “Deus” de Oyasumi Punpun.
Asano, de fato, parece se rebelar contra a ideia de propósitos maiores. Tal como suas personagens, esmagadas entre o peso de seus sonhos e ações, em sua eterna “crise dos 25 anos”.
Conclusão: vale o esforço?
Essas são histórias de coincidência, acaso, intersecções e estranhas coisas relatadas. E sobre qual delas é qual, e quem sabe disso… E é a humilde opinião desse narrador que estranhas coisas acontecem o tempo todo. Assim é e assim sempre será. E o livro diz: “Nós podemos romper com o passado, mas o passado nunca rompe conosco”.
Na minha opinião, essa é a melhor descrição de Nijigahara Holograph já escrita.
São, na verdade, as primeiras palavras de Magnólia, um filme com (não poucas) similaridades com o mangá: um ensemble cast, um retrato do abuso infantil, um flerte com um sobrenatural e um lugar (Magnolia Boulevard) que serve de ponto focal para o destino de várias pessoas.
Elas trazem uma mensagem simples, mas de forma alguma óbvia. Coisas acontecem, e se isto parece inevitável, nem por isso é suportável. Em especial quando estas “coisas” são tragédias, e quando nós somos não os espectadores, mas as vítimas ou os culpados.
Vivemos no fio da navalha entre os “anjos bons e maus” da nossa natureza. Manter-se do lado certo é o que faz a medida de um indivíduo.
Nijigahara Holograph é um soco no estômago, mas há certas lições que não podem ser passadas apenas como carinho. Por isto, se nada mais, sua fórmula é essencial.
Comentários
Então cara, eu já li esse mangá umas 3 vezes. Já li umas 4 resenhas sobre ele. Ainda to conhecendo esse doentio Asano e to achando ele incrível. Queria uma renha do Hikari no Machi e to ansioso pq já li que a Panini vai trazer esse mangá.
Mas a sua resenha ela é simplesmente fantástica!
Obrigado por ela
Eu que agradeço, Diogo!
Fique de olho, pois com certeza resenharei Hikari no Machi!
Pingback: “A Cidade da Luz”: algumas coisas pertencem à escuridão – finisgeekis
Ótima resenha! muito bem estruturada, uma das (ou a) melhor’es que já li sobre qualquer obra. Já li e reli a obra umas 4 veze, a última no volume impresso da JBC que está lindo também. Cada vez que leio percebo algo novo…depois dessa resenha acho que vou ler de novo haha!
“O mangá abre com a silhueta de uma menina com sangue entre as pernas”
não????
Gostaria de agradecer imensamente e de coração pela análise dissecante que fez sobre a obra e que realmente me fez entender muito mais sobre ela e sobre a vida. Depois de horas procurando alguma resposta, talvez agora eu tenha conseguido costurar a história e amanhã mesmo vou relê-la com outros olhos.