Quem ronda a internet atrás de notícias sobre Mass Effect: Andromeda já deve ter se deparado com a Explorers WantedA campanha da Bioware permite que qualquer um concorra à chance de ter sua voz incluída na próxima aventura épica do estúdio.

A ideia não é nova. Os criadores da saga de Shepard fizeram um concurso similar em 2014, quando do lançamento de Dragon Age: Inquisition. Para uma marca com tanto renome no mundo dos RPGs, era de se imaginar que a Bioware valorizasse seus dubladores – e aquilo que trazem para os jogos.

Desde que ganhou força na virada dos anos 1990 para 2000, a dublagem tem se tornado uma parte inseparável dos videogames. Hoje, é uma arte que conta com seus próprios prêmios e toda uma legião de fãs – e críticos ferozes.

Dublagem, no entanto, é muito mais do que ler um script na frente do microfone. Por trás dos diálogos interativos e performances inspiradas, está um dos trabalhos mais árduos, misteriosos e – por que não? – divertidos da indústria de games.

Tenha você o sonho de um dia ouvir a si mesmo em um jogo, ou apenas acha que a voz da Comandante Shepard é música para seus ouvidos, aqui está tudo o que você precisa saber sobre dublagem no mundo dos games:

1) Não espere um dia fácil… nem muito contato humano

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Dublagens para desenhos e filmes muitas vezes são feitas em grupo. O elenco tem a oportunidade de se conhecer, fazer contato visual, se ajudar com a interpretação.

Dublagens de games, por outro lado, são tarefas solitárias. De frente a um microfone em um cubículo, são acompanhados apenas por um diretor que conduz sua performance. Por horas a fio.

Pior: eles sequer sabem com quem estão dialogando. Elencos de games são protegidos por contratos de confidencialidade. Na maioria das vezes, dubladores só saberão quem foram seus colegas meses depois, quando a lista de atores for divulgada à mídia.

Para alguns, mesmo com experiência na indústria, isso pode ser um grande choque cultural:

Nem toda dublagem é igual. Os formatos (e a dificuldade) variam muito conforme a proposta.

Em alguns casos, dubladores operam praticamente no escuro. Para jogos muito simples, ou que ainda não disponham de footage liberada, atores precisam se orientar com os comentários do diretor, storyboard ou mesmo imagens:

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Como dá para se imaginar, a tecnologia facilita as coisas. Em 2002, quando GTA: Vice City foi lançado, os recursos eram tão limitados que os designers tiveram de encenar as cenas para Ray Liotta, o dublador de Tommy Vercetti.

Hoje em dia, estúdios tendem a disponibilizar vídeos do jogo para que os atores possam ver o que estarão fazendo. No caso de games localizados em outros países (como o Brasil), dubladores obviamente contam não só com a footage do jogo, como também com a referência americana.

Esse também o caso de uma das modalidades mais importantes de dublagem: a ADR, ou automated dialogue replacement. Em linhas gerais, ela consiste em regravar um áudio já existente, seja para melhorar sua qualidade, corrigir um problema ou “consertar” um diálogo ruim.

Nos games, ADR são bastante utilizadas em cenas de gameplay, para fazer os grunhidos, resmungos e palavrões que os protagonistas soltam enquanto lutam ou exploram.

Chamada de chasing, essas sessões colocam os atores frente à frente com as cenas de ação, para que improvisem os ruídos que suas personagens fariam naquele contexto.

Algumas das tiradas mais hilárias de Nathan Drake em Uncharted foram inventadas na hora por Nolan North, seu dublador, durante as sequências de chasing.

A título de curiosidade, ADR também serve para acrescentar ou modificar diálogos, em especial se o ator original não está mais disponível.

Lembra-se daquela frase que ouviu no trailer, mas que nunca apareceu no filme? Muito provavelmente foi “gravada por cima” em uma sessão de ADR.

Falando em trailers, um dublador que se tornou especialista nesse tipo de ADR é ninguém menos que Jon Bailey. Sim, você o conhece: nas horas vagas, ele faz a voz do canal Honest Trailers:

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Porém, mesmo com toda a tecnologia a seu favor, o trabalho dos dubladores ainda é infernal. No caso de RPGs e outros games com diálogos interativos, todas as opções de fala precisam ser interpretadas uma após a outra.

Não por acaso, Ellen Page disse que Beyond: Two Souls foi de longe o projeto mais difícil em que já trabalhou. Conseguir manter uma linha de raciocínio declamando diálogos que só farão sentido no jogo final já é difícil. Fazer isso sem sair da personagem é, de fato, tarefa para poucos.

O que nos leva a uma das reclamações  favoritas dos gamers:

2) Celebridades dão pouquíssimo retorno

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Como deu para ter a ideia, o trabalho de um dublador é bem diferente do trabalho de um ator convencional. Nem todas as pessoas que dominam um microfone se sentiriam confortáveis no palco, e nem todos que brilham na frente das câmeras saberiam o que fazer em uma sessão de ADR.

Na dublagem, não é possível contar com expressão facial ou corporal. Tudo precisa ser transmitido pela voz. Às vezes, isto significa fazer esforços estapafúrdios para mudar o próprio timbre.

Brian Bloom, o Varric Tethras de Dragon Age, diz que fazia gargarejos com whisky para entrar na personagem. Já Claudia Black, a voz de Morrigan na mesma série, tem uma sequência de aquecimento que mais parece um transe xamânico:

Parece loucura, mas os resultados não mentem. Com preparo suficiente, um dublador experiente consegue interpretar vozes completamente diferentes uma da outra.

Se não acredita, é só lembrar que essas duas personagens foram dubladas pela mesma pessoa:

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Não basta ter talento com a voz. Como cantores, Pitty e Roger Moreira, que figuram em quase todas as listas de piores dublagens nacionais, tem uma expertise muito diferente.

A recíproca é verdadeira. Ser um dublador de sucesso não significa que o ator terá sucesso na frente das câmeras.

Ali Hillis e Brandon Keener, a Liara e o Garrus de Mass Effect, por exemplo, nunca “colaram” como atores, embora já tenham feito pontas em séries como Buffy, CSI, Bones e  The Pacific.

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Brandon Keener como Lance Brooks em Buffy:  A Caça-Vampiros (2002)

Isso não significa que não existam pessoas que circulem pelos dois mundos. Martin Sheen, Elijah Wood e Gary Oldman são atores de sucesso que já brilharam na frente do microfone. No Brasil, Dan Stulbach e André Ramiro entregaram performances superiores a de seus pares americanos em Battlefield 4.

Outros, como Mark Hamill e Keith David, fizeram carreiras tão brilhantes como dubladores que até superaram seus trabalhos como atores “em carne e osso”.

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Keith David, o Capitão Anderson de Mass Effect

Acrescentar celebridades “por colocar” pode parecer uma boa ideia de marketing, mas o retorno é bem duvidoso. Como diz o dublador Steve Blum:

Com pouquíssimas exceções, dedicar uma parte considerável do seu budget para um figurão é uma magnífica perda de dinheiro. Um nome em um jogo é algo que executivos usam para impressionar um ao outro, e eu acho difícil de acreditar que todos esses dólares possam ser recuperados ou mesmo justificados.

Eu recentemente disse não a uma oferta de jogo, pois eles haviam me pedido para dublar 20 personagens com vozes estressantes em um único dia por contenção de custos, pois tinham estourado o budget com algumas celebridades.

Antes que o acusem de corporativismo, essa também é a opinião de Greg deBeer, gerente de diálogos da Sony, que coordena dublagens na maioria dos games da produtora:

Celebridades estão acostumadas a um jeito bem específico de serem tratadas e de tratarem a produção, e dublagem é muito diferente disso. E dublagem de games é diferente da de animação, ADR ou qualquer outra coisa em um set de filme. Existem alguns atores que lidam com isto muito bem, mas eu descobri que, na maioria das vezes, quanto mais exposição eles tiveram no mundo do cinema, menos eles sabem se virar nessas situações.

Para os produtores, a dica de deBeer é clara: “fique longe das celebridades”.

3) O motion capture é um mundo próprio

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Motion capture é a técnica de captar os movimentos de atores reais para que sirvam de referência a personagens virtuais.

Apontada há muito tempo como futuro dos games, a profecia se cumpriu. Hoje, está presente em todos os lugares, de grandes títulos AAA até jogos financiados por Kickstarter.

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Sessão de mo-cap de Kingdom Come: Deliverancegame checo financiado por crowdfunding.

Bastante popular na indústria de animação, o mo-cap, como é carinhosamente chamado, consiste em vestir atores com macacões cobertos com sensores, cujos movimentos são então decompostos e transferidos a modelos digitais.

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As vantagens da técnica são óbvias. Em vez de forçar modeladores a recriar cada mísero gesto em computador, o mo-cap permite que partam de um modelo real. Isto é importante para aqueles que desejam maior verossimilhança, mas também para estúdios preocupados com fidelidade técnica e histórica – por exemplo, ao retratar estilos de luta.

Você por acaso se impressionou com a destreza de Geralt em The Witcher 3? Não foi à toa; seus floreios vieram de um espadachim profissional:

Obviamente, como tudo na tecnologia, não existem milagres. Jogos diferentes possuem prioridades diferentes – e requerem tipos distintos de captura para prover aos jogadores uma experiência única.

L.A.Noire, da Rockstar, causou frisson em 2011 ao esbanjar um sistema avançado de fidelidade facial. No game de investigação, o jogador era capaz de “ler” as feições dos NPCs em interrogatórios para determinar se estavam mentindo ou não.

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O game utilizou uma técnica bastante específica chamada de motion scanning, segundo a qual atores são filmados por várias câmaras que o registram em 360 graus. Os traços e movimentos captados então servem de base para uma reconstituição 3D incrívelmente fiel.

O esquema se mostrou excelente para capturar expressões faciais, mas não o restante dos movimentos. Para isso, era preciso ainda “fundi-las” com sessões de mo-cap tradicional.

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Beyond: Two Souls, de David Cage, chutou o pau da barraca em termos de precisão de captura. A tecnologia utilizada pela Quantic Dream contou com microssensores nos rostos dos atores, que permitiam que cada mísera contração fosse registrada sem que precisassem sequer exagerar os movimentos.

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A técnica caiu como uma luva à sua proposta. Com astros como Ellen Page e Willem Defoe no elenco, o estúdio queria tirar de seus atores todo o talento que tinham a oferecer. Independente do que pensemos do jogo final, não dá para dizer que não tiveram sucesso.

No entanto, nem sempre é assim. Tecnologias como a empregada pela Quantic Dream são estupidamente caras – e nem sempre preferíveis pela maioria dos estúdios. Na maioria das vezes, mo-cap é utilizado para capturar o movimento de esqueletos, e “detalhes” como a expressão facial são acrescentados depois, por artistas 3D.

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É o caso de algumas referências absolutas em boa dublagem e animação, incluindo Uncharted, The Last of Us e, recentemente, The Witcher 3.

A vantagem é que dissociar os movimentos da aparência permite que grandes dubladores (que nem sempre são galãs de Hollywood) tenham seu talento aproveitado. É o caso de Nolan North, o barrigudinho, mas insuperavelmente talentoso intérprete de Nathan Drake em Uncharted:

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Obviamente, um bom dublador não é necessariamente um bom ator – muito menos um bom artista marcial ou praticante de parkour. Para tomadas mais elaboradas, é necessário contratar experts nos movimentos em questão e encontrar alguma maneira de “uni-los” à personagem.

Nesses casos, o movimento de seus corpos é capturado para as animações do jogo, mas seus trejeitos faciais precisam ser feitos do zero no computador. Isto pode levar a algumas situações bem estranhas e até mesmo cômicas.

Para cenas de sexo, por exemplo, os atores precisam estar próximos o suficiente para parecer que estão no coito, mas não podem se beijar ou esfregar os rostos demais, pois dificulta o trabalho dos modeladores.

Assim, quando ouvir que The Witcher 3 levou 16h para gravar suas cenas de sexo, saiba que não estavam filmando um jogo pornô. Tomadas eróticas com mo-cap dão muito trabalho: precisam ser refeitas várias vezes e de muitos ângulos diferentes.

Vejam, por exemplo, Claudia Black e Nolan North tendo seu momento íntimo em Uncharted 2:

Isso tudo é complicado. Porém, como fãs de cinema sabem muito bem, não tem nada de novo. Já em Star Wars Darth Vader foi interpretado por três atores diferentes: David Prowse (seu intérprete de “corpo”), James Earl Jones (sua voz) e Sebastian Shaw (seu “rosto”em O Retorno de Jedi).

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David Prowse como Darth Vader

Curiosamente, alguns estúdios de games não aprenderam a lição. Em 2014, o remake de Thief causou polêmica ao trocar Stephen Russell, dublador do ladino Garret desde 1998, por outro ator capaz de fazer as acrobacias esperadas do mo-cap.

Infelizmente, tal como o culto às celebridades, o mo-cap também é um meio para executivos impressionarem seus colegas. Para o prejuízo dos gamers – e, principalmente, dos próprios atores.

Afinal de contas,

4) Dubladores são heróis anônimos

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A não ser que seja um seguidor compulsivo dos bastidores dos games, é provável que seja a primeira vez que vê o casal acima. Ganha um cookie, no entanto, quem nunca tiver jogado um jogo em que algum dos dois trabalhou.

O bonitão da esquerda é Troy Baker, intérprete de Booker DeWitt em Bioshock: Infinite, Joel em The Last of Us, Talion em Shadows of Mordor e mais dezenas de outras personagens.

A da direita é Jennifer Hale, voz de Samus Aran em Metroid Prime, Comandante Shepard em Mass Effect, Bastilla Shan de Star Wars: KotOR e mais uma lista que me levaria o dia inteiro para ler.

Jennifer está em tantos jogos que entrou para o Livro dos Recordes em 2013 como a dubladora mais prolífica do mundo dos games. Mesmo assim, continua (quase) uma ilustre desconhecida.

Como uma vez disse Raphael Sbarge, o Kaidan Alenko de Mass Effect, se você já dublou para a indústria de games, com certeza já trabalhou ao lado de Hale. Contudo, é bem possível que não a reconhecesse se cruzasse com ela no supermercado.

Se isso lhe parece injusto, não fique triste. A maioria dos dubladores gosta do anonimato e escolheu a dublagem justamente porque não têm estômago para os paparazzi e cultos às celebridades da atuação convencional.

É o caso de Claudia Black, que diz que ama a profissão porque pode “ir trabalhar sem ter tomado banho”.  Ou do próprio Troy Baker:

Um amigo meu uma vez disse: “Fama é quando as pessoas te conhecem, renome é quando as pessoas conhecem seu trabalho”. Isto é o que eu quero. Atores sempre falam merdas como essa, mas é a verdade. Eu não quero fazer isso para ser famoso; eu quero fazer isso para que as pessoas vejam o que eu estou fazendo e digam: eu quero fazer isso também. Se eu posso dar o meu melhor e inspirar alguém que realmente deveria estar fazendo isso, então eu cumpri o meu trabalho.

Dublagem é algo bem específico. Porém, acredito que todos que (como eu) já se emocionaram com seus papeis concordarão que ele cumpriu a sua missão.