Eu me lembro de quando vi o Dicionário Houaiss pela primeira vez na vida. O ano era 2001, e eu, então com 10 anos, nunca havia visto um livro maior, mais bonito nem, provavelmente, mais caro.
Ele acabara de ser lançado, e a banca de jornal em que eu ia toda semana o havia colocado na prateleira de destaque. Eu, que entrara para comprar gibis, tive até dificuldade para entender o que um livro daqueles estava fazendo lá.
Eis que meu pai aparece e me diz algo do qual provavelmente não vou me esquecer: “Você quer esse livro? É seu.” Antes que eu pudesse reagir, emendou: “Sempre que quiser qualquer coisa para ler, pode me pedir que eu compro. Não importa o quanto custe.”
Não posso dizer que o plano não deu certo. Eu me tornei um grande amante de livros. Mesmo hoje, em que praticamente abandonei o velho códice em favor de ebooks, ainda tenho um grande carinho pela minha biblioteca.
Fune wo Amu, lançamento da temporada de outono de anime, é o que acontece quando meu deslumbramento aos 10 anos é transformado em uma história. Com a character designer de Showa Genroku Rakugo Shinjuu, seiyuus de peso como Maaya Sakamoto e o calibre do bloco Noitamina, é uma série com tudo para dar certo.
Suas credenciais falam por si só. O anime é baseado em um romance bestseller de Shion Miura, adaptado a um filme por Yuya Ishii. E não qualquer tie-in de light novel, mas um longa premiadíssimo, escolhido para representar o Japão no Oscar de 2013.
The Great Passage
Seu enredo acompanha uma editora que deseja lançar um novo dicionário no mercado.
O diferencial está na proposta. Daitokai (ou “A Grande Passagem”, que também serve de título à adaptação em inglês) pretende ser um dicionário do agora. Ele incluirá gírias, palavras chulas e usos “errados” de expressões.
Não é preciso ser linguista para saber que a proposta é ambiciosa. Em 2013, alguns dicionários causaram polêmica ao definir “literalmente” como “figurativamente, com ênfase”. A resposta foi clara: nossa missão, disseram, é a de registrar a língua como ela é usada, nao como intelectuais querem que seja usada.
Em um país com uma língua milenar e um sistema de escrita tão complexo que mesmo alguns japoneses não o entendem bem, as personagens de Fune wo Amu tem um desafio de peso na sua frente.
É, no entanto, um percalço que abraçam com gosto – e com muita criatividade.
Com um editor prestes a se aposentar, o grupo precisa encontrar alguém capaz de tocar o projeto para a frente. A solução que encontram é engenhosa: aos abordados, perguntam se são capazes de definir a palavra “direita”.
É um problema capicioso, que me levou até a pesquisar como os dicionários de verdade o resolveram. O Michaelis e o Merriam-Webster a definem como o “lado do corpo humano oposto ao do coração” (o que está errado, pois o coração na verdade fica no centro da caixa torácica).
Já o Houaiss a define como o “lado do corpo que aponta para o leste quando o indivíduo está voltado para o norte”. É, por acaso, quase a mesma resposta que o candidato escolhido lhes dá.
Esse candidato é Mitsuya Majime, um nerd introvertido “clássico”, com óculos demais e tato social de menos. Formado em linguística e sem o menor talento para vendas, departamento onde trabalhava, ele é logo recrutado ao projeto.
No começo havia o verbo
Estamos tão acostumados a consultar dicionários que nunca paramos para pensar como eles são compilados. Hoje, usamos tanto o Google e os muitos sites especializados que temos a impressão de que eles brotam sozinhos, sem nenhum esforço.
Como Fune wo Amu nos mostra, isso não podia ser mais longe da verdade. Os “pais dos burros” são resultado de um processo longo, demorado e até um pouco divertido.
Tudo, claro, começa com a coleta. Palavras técnicas ou mais difíceis são enviadas a especialistas. Já aquelas do dia-a-dia (as mais importantes para a proposta do Daitokai) tem de ser encontradas pelos próprios editores.
Para isso, todo membro do projeto anda sempre com um cartela de fichas, que preenche quando encontra uma palavra nova, ou que foi usada de uma forma diferente.
Como dá para imaginar, essa é uma das partes mais difíceis do processo. É, também, a fonte de algumas das cenas mais divertidas do filme.
Em uma, um dos editores mais experientes se senta ao lado de um grupo de adolescentes para “captar” gírias novas. As jovens, no entanto, são otomes, e ensinam a ele a palavra mais importante para qualquer fujoshi:
Em outra, Majime, o atrapalhado protagonista, se apaixona por uma vizinha. Cansado, ele acaba “coletando-a” em uma ficha, para a gargalhada de seus colegas de escritório.
Porém, nem só de descontração é feito um dicionário. Majime e seus colegas se vêem soterrados até o pescoço numa quantidade de trabalho que faz os desafios dos animadores de Shirobako parecerem brincadeira de criança.
Depois de coletadas, todas as 240 mil palavras precisam ser classificadas e escolhidas uma a uma. O dicionário é então revisado cinco vezes do começo ao fim para que esteja simplesmente perfeito. Se alguma coisa estiver fora dos trinques, precisam voltar à estaca zero.
Sem tolerância para o menor deslize, com prazos mordendo os calcanhares, os editores e estagiários logo transformam seu escritório em um verdadeiro cortiço.
Se isso ainda assim parece normal, tenha em mente que um dicionário não é algo que se termina em alguns dias – nem mesmo em alguns anos. O pesado Houaiss que me encantou em 2001, por exemplo, começou a ser feito em 1985, 16 anos antes!
Os editores de Fune wo Amu aprendem isso do jeito mais difícil. O que parecia ser mais uma aventura se mostra o projeto de uma vida inteira. Supondo, é claro, que vivam para terminá-lo.
O tempo passa, as personagens envelhecem, encontram seus caminhos ou se perdem de vez. Novatos entram no projeto, veteranos são forçados a se afastar.
O presidente da editora começa a duvidar que Daitokai dê lucro. Como condição para não cancelá-lo, pede que a equipe faça “dicionários temáticos” sobre vários assuntos: culinária, moda, idols, monstros. O escritório, que antes parecia uma biblioteca, ganha pilhas de revistas de moda e pôsteres de anime.
Majime, antes mais à vontade nos livros do que no mundo real, pouco a pouco aprende a conviver em sociedade. Seus colegas, de uma forma ou de outra, passam por uma metaformose similar. Pois…
A “Grande Passagem” é mais do que um dicionário
Fune wo Amu começa em 1995. Em uma de suas primeiras cenas, Matsumoto, o editor-em-chefe, exibe a todos a maior novidade do momento: o revolucionário celular “tijolão”. Quando o dicionário finalmente é publicado, o ano é 2008, e a deusa cadela da internet já domina o mundo.
A “grande passagem” não é apenas um dicionário, nem a trajetória daqueles que o escreveram. É, também, a história do fim da era analógica e do processo que mudaria nossas vidas para sempre: a revolução digital.
O que leva à pergunta: existe sentido em escrever um dicionário impresso em um mundo de memes, .pdf, ebooks e verdades que mudam toda manhã?
Em uma época em que feiras de literatura estão às moscas e bienais de livro se transformaram em palcos para youtubers, existe ainda alguém disposto a conhecer seu idioma a fundo?
Há propósito em um “dicionário do agora”, se esse “agora” levará 15 anos para chegar?
Para convencer o presidente da editora a não cancelar o dicionário, Nishioka, o colega extrovertido de Majime, diz a ele que a empresa “ainda dará lucro por mais vinte anos!”. O presidente dá risada. Como é que ele, nos dias de hoje, pode ser ingênuo a ponto de achar que é possível saber o que vai acontecer com vinte anos de antecedência?
Nós vivemos em um época “sem futuro”, em que as coisas mudam tão rápido que não sabemos o que nos espera. A profissão mais bem paga de 2035 ainda não foi inventada; o bestseller de 2016 será esquecido em 2018.
Em 1992, o historiador Francis Fukuyama disse que estávamos próximos do fim da história. Dez anos depois, ele próprio engoliu suas palavras, argumentando que a ciência poderá nos alterar além de qualquer expectativa.
No ano 2000, Bill Clinton, então presidente dos EUA, disse que a internet jamais seria controlada. Uma década depois o Grande Firewall da China separou um bilhão de pessoas da web mundial. Para o desalento dos demagogos, a era das profecias chegou ao fim.
É fácil, em tempos de tanta incerteza, querer se refugiar no passado. Esquecer a modernidade e suas loucuras e valorizar a sabedoria consagrada, as tradições, a normalidade. Muito mais difícil é fazer isso sem que o progresso nos atropele – e nos transforme em uma peça de museu.
Em um dos momentos mais tragicômicos de Fune wo Amu, Majime decide escrever uma carta de amor para Kaguya, a garota dos seus olhos. Linguista nerd que é, decide escrever a mão, com pincel, como manda a tradição.
O problema é que sua caligrafia é tão boa – e seus kanjis tão difíceis – que Kaguya não consegue lê-los. Alfabetizada na era da caneta e do teclado, aqueles ideogramas são tão indecifráveis quanto um manuscrito medieval.
Um barco para nos guiar
Fune wo Amu é uma obra estranha. Tal como Vidas ao Vento, de Hayao Miyazaki, é o que alguns críticos chamaram de “história de prancheta”. Em vez de grandes jornadas, combates épicos e mistérios sobrenaturais, temos uma obra em que as personagens passam 90% do tempo sentadas trabalhando.
Se a trama mesmo assim cativa, é porque teve sucesso em passar uma mensagem verdadeira, atual e (por que não? ) tocante.
E que sucesso. Da mais tradicional das narrativas (o livro), Fune wo Amu conquistou a mídia que inaugurou o século XX (o cinema) e chega finalmente ao anime, símbolo da modernidade cool do Japão contemporâneo. Modernidade que o próprio Shinzo Abe, premiê conservador do país, anunciou como o futuro que deseja para sua nação.
Toda temporada nos traz pelo menos um anime com uma pegada mais séria. Na maioria dos casos, como em Showa Genroku Rakugo Shinjuu, me vejo perguntando que loucura teria levado alguém a fazê-las em primeiro lugar.
Para Fune wo Amu, preciso fazer a pergunta contrária. Como um anime como esse não chegou até nós mais cedo?
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