É o momento que todos esperávamos e temíamos. The Witcher 3: Blood and Wine, a segunda expansão do jogo do ano de 2015, finalmente foi lançada. Infelizmente, é também a nossa última aventura com o Lobo Branco de Rivia.
Como a CD Projekt RED anunciou, não haverá um Witcher 4. Salvo alguma mudança brusca de política editorial, essa será a última aventura do witcher Geralt pelo mundo dos games.
Nem tudo, porém, é motivo para tristeza. Blood and Wine é uma aventura primorosa. Com mais de 30h de duração (tão longa quanto Witcher 2), a expansão é um verdadeiro tributo à franquia, unindo elementos dos primeiros jogos a um dos mais pitorescos cenários dos romances:
O ducado de Toussaint.
Protetorado de Nilfgaard renomado pelos seus vinhos e cavaleiros errantes, Toussaint é a imagem perfeita da Idade Média utópica dos dragões, princesas e feitos de bravura.
Obviamente, ele também é muito mais do que isso. Como já era de se esperar de The Witcher, ele também está recheado de referências históricas, mitológicas e tributos a Andrzej Sapkowski.
A Haley MacLean do Gameinformer fez a sua própria lista sobre o folclore por trás de Blood and Wine. Aqui, faço eu a minha contribuição. Abaixo seguem 4 curiosidades para aqueles que desejam curtir o “canto do cisne” de Geralt de Rivia em tudo o que tem a oferecer.
(Aviso: contém SPOILERS para The Witcher 3: Blood and Wine)
1- O “ducado dos vinhos” realmente existiu.
Como diz a duquesa Anna Henrietta, o vinho em Toussaint é sagrado. As melhores garrafas do mundo são importadas do ducado. Em sua jornada para encontrar a Besta de Beauclair, Geralt não consegue dar um passo sem topar com um enólogo pedindo para matar os monstros em sua adega. E, na hora de recompensá-lo pelo serviço, a duquesa não pensa duas vezes e lhe presenteia com um vinhedo.
Se nomes como “Sansretour”ou “Beauclair” não forem dicas suficientes, o ducado de Blood and Wine é inspirado na França. O que talvez seja menos óbvio é que Toussaint não é uma terra de fantasia genérica, mas um lugar baseado em uma província real.
Trata-se do antigo Ducado da Aquitânia, que em termos de beleza não perdia em nada para as CGs da CD Projekt RED:
Além dos castelos e das planícies verdejantes, a região produzia os vinhos mais famosos da Idade Média. A partir do século XIII, quando o ducado se tornou uma província inglesa, os seus vinhos se tornaram a bebida mais requisitada dos nobres europeus, presença garantida nas principais cortes do Ocidente.
Infelizmente, o tempo não foi tão bondoso com os vinhedos medievais. Com a popularidade dos vinhos modernos de Bordeaux, o interior da Aquitânia (a ‘Toussaint’ do mundo real) caiu no esquecimento. Hoje, é uma das regiões menos badaladas da França.
Felizmente, para aqueles que se apaixonaram por Beauclair e sonham em provar um Erveluce, algumas denominações são produzidas até hoje.
É o caso do Clairet, considerado um dos melhores vinhos da Idade Média. Ou então o Jurançon, que ganhou fama como “vinho de batismo” do rei Henrique IV (1553-1610).
Se há uma diferença entre Toussaint e a Aquitânia, contudo, é que a última foi uma terra estupidamente mais violenta que a primeira. Os vinhedos do ducado foram motivo de diversas guerras entre ingleses e franceses, loucos para lucrar com seu comércio. Não é por acaso que a região foi o epicentro da Guerra dos Cem Anos.
A duquesa Henrietta pode se queixar da Besta de Beauclair, mas deve concordar que seu trabalho poderia ser muito mais difícil.
2- Syanna é a Branca de Neve
The Witcher começou com uma série de releituras de contos-de fada. Nada mais cabível para o final da trilogia, portanto, que nos levar de volta aonde tudo começou.
Na sua jornada para salvar Beauclair, Geralt eventualmente se depara com a Terra das Mil Fábulas, um mundo paralelo que parece saído da mente dos Irmãos Grimm.
Lá, ele precisa buscar ajuda (ou enfrentar) algumas das histórias mais queridas de nossas infâncias. Há apenas um problema: com o passar do tempo, a magia que sustenta o mundo paralelo começou a se deteriorar, e os contos-de-fada adquiriram um lado mais… sombrio.
Alguns são bem fáceis de identificar. É o caso da Rapunzel. Após ver o príncipe cair e morrer durante a escalada para salvá-la, ela decide se libertar do cativeiro de um jeito mais radical:
Ou então o da vendedora de fósforos de Hans Andersen, que descobre que o tráfico de drogas é muito mais lucrativo.
Outros contos, no entanto, aparecem de forma mais sutil. Aqui, o melhor exemplo é o da própria Syanna. Irmã mais nova da duquesa Anna Henrietta, ela nasceu em um dia de mau augúrio e foi deserdada pelos pais. Expulsa de Toussaint, tornou-se uma fora-da-lei buscando fazer a família pagar pela sua humilhação.
Como o próprio Geralt percebe, a sua história é quase idêntica à da mulher por trás de um de seus primeiros contratos: Renfri de Creyden. Trata-se da personagem principal do conto Um Mal Menor, inspirada em ninguém menos que a Branca de Neve.
Amaldiçoada ao nascer, Renfri também foi deserdada pelos país. Com medo de que se transformasse em um monstro quando crescesse, sua madrasta mandou matá-la. Renfri, no entanto, sobreviveu, tornou-se líder de uma gangue de gnomos e perambulou mundo afora atrás de sua vingança.
Com a ajuda de seus “sete anões”, ela quase teve sucesso nos seus planos. Ao descobrir que o mago que a “diagnosticara” estava escondido na pequena cidade de Blaviken, ela partiu para matá-lo.
Infelizmente, tal como a Branca de Neve, Renfri também encontrou um caçador. Um “caçador” que, daquele dia em diante, seria conhecido como o Açougueiro de Blaviken.
3- “Intepretar” cavaleiros errantes já foi um costume popular
Toussaint não é um ducado como outro qualquer. Em vez de exércitos, guerrilheiros ou milicianos, a província conta com a bravura de cavaleiros errantes dispostos a enfrentar vilões pela honra de suas donzelas.
Tanto nos livros de Sapkowski como em Blood and Wine, os cavaleiros de Toussaint são retratados mais como fanfarrões do que como guerreiros sérios. Eles falam pomposamente, têm mais pose do que habilidade em armas e insistem em “servir” donzelas que só querem ser deixadas em paz.
Há muitas referências históricas em The Witcher, mas é fácil concluir que seus “cavaleiros errantes” não são uma delas. Não é por acaso que, ao chegar em Toussaint, Geralt é recepcionado por um jovem atacando um moinho de vento. O ducado de Anna Henrietta parece saído direto da imaginação de Dom Quixote.
Sim… e não. Embora as novelas de cavalaria sejam ficção, elas foram escritas na Idade Média e lidas avidamente por aristocratas. Alguns, tal como os guerreiros de Toussaint, sentiram-se inspirados para fazer um pequeno “role-play”.
Embora nunca tenha existido uma “ordem universal” da cavalaria, vários monarcas decidiram criar suas próprias irmandades baseadas nas tradições de seus países.
Algumas, como a Ordem do Garter e a Ordem do Tosão de Ouro, existem até hoje e viraram condecorações de monarquias contemporâneas.
Para quem sabe procurar, Blood and Wine faz referência direta a essas ordens. Como recompensa por salvar Beauclair, a duquesa de Toussaint promete a Geralt a Ordem da Vitis Vinifera (por acaso, o nome científico da uva)
Ordens não precisavam ser coisas pomposas, no entanto. A maioria eram simples “parcerias” entre cavaleiros, como as de Milton Peyrac-Peyran, de la Croix e tantos outros cavaleiros que Geralt encontra em sua visita à Toussaint.
O historiador D’Arcy Boulton resolveu investigar o tema e encontrou centenas de irmandades desse tipo.
Algumas eram criadas de propósito para imitar novelas de cavalaria e duravam apenas alguns dias. Por exemplo: não era incomum que um grupo de cavaleiros bloqueasse uma ponte e só permitisse a passagem daqueles que o desafiassem em combate… ou se prestassem a alguma jura.
Como é possível de imaginar, nem todo mundo encarava essas fantasias com bons olhos. Para o cavaleiro e escritor Philippe de Mezières, esse culto estúpido à cavalaria era o culpado pela mortandade da Guerra dos Cem Anos:
“Ouçam, vocês que semearam esse derramamento de sangue humano tão terrível. Por causa de sua guerra malévola, elevados por orgulho e pela luxúria por aquilo que não passa de uma terra minúscula, toda a Cristandade por cinquenta anos foi virada de ponta-cabeça (…) e o que é pior: aquilo que vocês foram empoderados por Deus para fazer para a punição dos pecados dos franceses e escoceses vocês atribuem a sua própria coragem e cavalaria, embriagados como estão com orgulho e atiçados pelas histórias de Lancelot e Gawain.”
A vontade de imitar os heróis das lendas não parava por aí. Nas cortes europeias, eram populares festas da Távola Redonda em que nobres se vestiam e interpretavam heróis arturianos. Para todos os fins, era quase um LARPG feito na própria Idade Média.
Alguns chegavam ao ponto de construir suas próprias távolas redondas para manter a imersão. É o caso de Eduardo III, rei da Inglaterra, que organizou uma enorme festa arturiana no Palácio de Windsor em 1344. O “LARPG” foi tão monumental que deixou vestígios: em 2006, uma expedição arqueológica encontrou sua Távola Redonda no antigo pátio do castelo.
4- Os vampiros irão herdar a terra
Força sobrehumana. Imunidade a magias de detecção. Capacidade de se transformar em fumaça. Nunca houve dúvidas de que os vampiros de The Witcher eram criaturas poderosas. Blood and Wine, no entanto, eleva o brilho dos dentuços imortais à última potência.
Emiel Regis Rohellec Terzieff-Godefroy, o fiel companheiro de Geralt dado como morto no romance A Dama do Lago, reaparece com uma novidade bombástica. Apenas um vampiro pode matar permanentemente outro vampiro.
Não importa quanto eles sejam feridos, nem se forem desintegrados ou transformados em poeira. Eles sempre podem se regenerar.
Todos os vampiros mortos pelos witchers aos longo dos séculos? Vivos. Humbert, o vampiro que tentou matar Priscilla em Novigrad? Vivíssimo, esperando sua vingança.
E isso é só o começo. Em Blood and Wine, vampiros deixam de ser caçadores solitários e são apresentados como toda uma sociedade à parte, com direito a clãs, castelos e “líderes regionais”. Com a capacidade para transformar o mundo dos humanos em um inferno na terra, se ficarem contrariados.
Na franquia The Witcher, os jogos da CD Projekt RED não são canônicos. Felizmente (ou infelizmente, dependendo de quanto o leitor curtir Anne Rice), a “vampiromania” de Blood and Wine não encontra paralelos nos livros de Sapkowski.
Mesmo assim , a expansão foi fiel a um dos detalhes mais peculiares nos romances de Geralt. Neles, vampiros não são apenas superiores. Eles também herdarão o mundo.
A razão, por incrível que pareça, tem menos a ver com Bram Stoker do que com Charles Darwin. Como Regis explica a Geralt no romance Batismo de Fogo:
“Há razão para crer que a luz solar é mortal no longo prazo. Há teorias que dizem que, em cinco mil anos, calculando de forma modesta, esse mundo será habitado apenas por criaturas noturnas.”
Se os monstros, a guerra entre Nilfgaard e os Reinos do Norte e a Caçada Selvagem não fossem o suficiente, os habitantes do universo de The Witcher têm de se preocupar com uma calamidade a mais: seu mundo está, literalmente, morrendo.
Nenneke, a sacerdotisa de Melitele que socorre Geralt em O Último Desejo, explica com todas as letras:
“- Metade das plantas que você tem aqui não crescem em nenhum outro lugar (…) Por quê?
(…)
– Você vê, Geralt, esse nosso sol claro ainda está brilhando, mas não do mesmo jeito como brilhava antes. (…) [Esse] teto de cristal age como um filtro. Ele elimina os raios letais que podem ser encontrados com maior e maior frequência na luz solar. É por isso que plantas que você não vê em lugar nenhum do mundo crescem aqui.
– Eu entendo – assentiu o witcher – E nós, Nenneke? O que acontecerá conosco? O sol brilha sobre nós, também. Nós não deveríamos nos abrigar sob um teto como esse?
– Em princípio, sim – suspirou a sacerdotisa – Mas…
– Mas o quê?
– É tarde demais.”
Reparem como essa “mudança climática” não tem nada a ver com a White Frost que Ciri luta para dissipar em Witcher 3. Mesmo que tudo dê certo, que a profecia de Ithlinne não se cumpra e que todos saiam vivos e contentes da luta contra a Caçada Selvagem, o mundo vai acabar de qualquer forma.
Se por um lado isso soa depressivo, por outro não deve espantar fãs de literatura fantástica. A escatologia – a crença de que o mundo está em decadência e que o futuro trará apenas a destruição – é um dos elementos mais recorrentes no gênero.
Enquanto que alguns escritores abraçaram a ficção científica para imaginar futuros impossíveis (muitas vezes ideais), outros, receosos com o progresso, resolveram se voltar para o passado – e para a tristeza de um mundo que se acaba.
É o grande lamento de O Senhor dos Anéis e seu mundo mágico que fenece para dar espaço à era dos homens. É, também, o lamento dos próprios witchers, uma casta de caçadores de monstros que vivem em ruínas, não treinam novos membros e não são mais vistos como necessários.
Não é exatamente um desfecho para nos abrir um sorriso no rosto. Porém, como a fantasia já nos provou várias vezes, nem toda história precisa de um final feliz.
Nada mais apropriado (e nostálgico), para celebrar a despedida de Geralt no mundo dos games.
Ainda que Sapkowski não aceite os jogos como canon, é impressionante como eles – e especialmente o 3 – respeitam a mitologia e o cenário. Por mais que B&W tenha apresentado uma sociedade vampírica, ela é esparsa o suficiente para não trair o lore do cenário.
Como um fanzaço da franquia, posso dizer com propriedade: que artigo excelente!
Muito obrigado!
Meus sentimentos sobre os jogos são os mesmos. Sobretudo seus aspectos visuais. O tanto de pesquisa que foi feita para manter o espírito “eslavo” e fiel aos livros é impressionante.
Ótimo texto!
Fico triste em saber que o pessoal dá CD Red não tem planos de mais nada no universo “witcher”, uma aventura solo da Ciri seria algo que faria questão de jogar!
Um game sobre as aventuras dela através das dimensões, fugindo da Wild Hunt. Já imaginou?
Excelente artigo amigo, parabéns, como não li os livros, e comecei do 3º, foi uma boa surpresa as informações sobre a misteriosa Syanna. Mto bom =)
Estou em uma discussão ferrenha… Afirmo que Dettlaff não morre no final. Regis aprisiona ele na “gaiola” no subsolo de Tesham Mutna. Para chegar nesta conclusão, é necessário assimilar tudo o que é falado por Regis nos diálogos, e não esquecer que quem escolheu este lugar para enfrentar Dettlaff foi Regis. Segundo Regis, Tesham Mutna é um local que foi habitado por vampiros.
Bom artigo, bem esclarecedor…