Fãs de Martin Scorsese sabem que 2016 é um ano para não esquecer. Silence, seu projeto pessoal em desenvolvimento desde 1991, cujo storyboard inspirou o cartaz da 39a Mostra de Cinema de São Paulo,  finalmente dará as caras ao grande público.

Entusiastas de cultura japonesa têm motivo redobrado para acompanhar o lançamento. Trata-se da adaptação de um dos maiores clássicos da literatura nipônica contemporânea.

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Silêncio, como é conhecido no Brasil, é uma obra intrigante. Por um lado, é um livro japonês sobre o Japão. Ao mesmo tempo, é a última história que esperaríamos ler de um nativo.

Escrita por Shusaku Endo, japonês católico, ela narra a perseguição a cristãos no Japão e a crise de fé de alguém que se sacrificou para ajudá-los.

A trama nos leva a um cenário bem familiar para amantes de filmes históricos. Nos século XVI, o Japão era um campo de batalha, e os missionários europeus encontraram braços abertos entre daimyos interessados nas benesses de uma aliança com poderes ocidentais. Alguns, como Date Masamune, chegaram a se corresponder com o Papa.

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Túmulo de Will Adams em Hirado, Nagasaki

Com a unificação sob o shogunato Togukawa, a situação mudou. Portugueses e espanhois passaram a ser vistos com crescente desconfiança. A abertura com o Ocidente não tardou a trazer desafetos dos jesuítas, como Will Adams, náufrago protestante que se tornou samurai de Ieyasu. O catolicismo foi banido. Cristãos japoneses foram forçados a se reconverter. No pior dos casos, acabaram crucificados.

Tais reveses não dissuadiram os jesuítas. Missionários continuaram a desbravar os mares e ensinar sua fé na clandestinidade.  Em 1633, no entanto, a missão portuguesa em Macao recebeu notícias tenebrosas.

Cristovão Ferreira, o mais importante evangelizador em solo japonês, renunciara ao cristianismo e passara a cooperar com seus perseguidores.

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Que devotos japoneses fraquejassem diante da repressão era esperado. Que o líder da missão abdicasse da fé à qual se dedicara a vida toda era inconcebível.

Silêncio acompanha a jornada de um jovem missionário, Sebastião Rodrigues, decidido a desvendar o mistério. Contra os conselhos de todo – até de Alessandro Valignano, o maior evangelizador do Oriente – ele parte ao Japão em um junco chinês para levar a palavra de Deus aos cristãos perseguidos. E, se possível, descobrir o que acontecera a Ferreira.

Endo nos mostra o “coração das trevas”, o terror escondido que foi posto em prática quando as cortinas finalmente se fecharam. Quando camponeses cristãos pegaram em armas contra o governo na Rebelião de Shimabara, a retaliação foi total e inclemente.

Ao perceber que o martírio não dissuadia os cristãos, o shogunato começou a empregar métodos cada vez mais cruéis de execução. Missionários eram grelhados vivos. Mães eram queimadas na estaca junto com seus bebês.

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Quando mesmo esses espetáculos mostraram não surtir efeito, os oficiais apelaram à tortura. Cristãos eram crucificados e largados na praia, lutando para não se afogar com a maré alta, até eventualmente sucumbirem de exaustão. Ou, então, submetidos ao tsurushi: pendurados de ponta cabeça em poços com escremento até renunciarem a sua fé .

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Tsurushi no storyboard de “Silence” (2016)

Quando mesmo essas agruras não funcionaram, o shogunato mudou de estratégia. Em vez de atacar missionários dispostos a morrer em nome da Igreja, passaram a torturar seus rebanhos. Aldeias suspeitas de hospedar evangelizadores tinham camponeses sequestrados, torturados ou executados preventivamente.

O horripilante em Silêncio não é a violência, mas a insidiosidade do plano do shogun. Como certa personagem de Alan Moore, também Inoue, o magistrado que encabeça a caça aos cristãos, sabe que ideias são à prova de bala.

Não adianta caçar hereges pelas montanhas ou queimá-los vivos. É preciso separá-los da fonte, colocá-los contra os missionários. Sem ninguém para ouvi-las e disseminá-las, ideias fenecem.

Rodrigues, o herói trágico de Endo (baseado no histórico Giuseppe Chiara), se vê em um dilema. Passar os dias inutilmente escondido, em condições de miséria piores do que a do próprio Cristo, ou cumprir sua missão como padre e arriscar pôr a vida daqueles que ajuda em risco.

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Por trás de toda a sua roupagem de época, Silêncio é uma fábula universal sobre a dificuldade de manter a fé quando nos vemos condenados a um mundo cruel. Sobre os momentos angustiantes em que, cercados de dor, desespero e sofrimento arbitrário, nos voltamos aos céus e recebemos, como resposta, apenas o silêncio.

Não é à toa que Shusaku Endo é frequentemente comparado a Graham Greene, o famoso escritor católico britânico. Nem que alguns críticos tenham feito a comparação entre os sofrimentos de seu Padre Rodrigues e a discriminação que ele mesmo sofreu como cristão japonês.

Silêncio não é um livro fácil de se digerir – nem como o será, imagino eu, a adaptação que Scorcese está para nos oferecer. Justamente por isso, ele é a formulação perfeita de uma das perguntas mais rotineiras dos que se aventuram pela ficção histórica.

Como admirar o passado em meio a tanto sangue, crueldade e estranheza?

O passado é um país estrangeiro
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Se romances históricos são tão interessantes, é porque frequentemente dizem mais sobre o presente do que sobre o passado que dizem retratar. Autores sempre olham para trás por uma razão. Às vezes, desejam ressuscitar uma relíquia de eras passadas. Em outras, querem se certificar de que continue bem enterrada.

Para alguns, esse tipo de ficção é uma oportunidade para se criticar o que há de errado em nossos próprios tempos. Ao atacar os horrores de uma época menos evoluída, eles escancaram o quão “retrógrado” e “pouco esclarecidos” os cidadãos do presente ainda são.

Nas entrelinhas, todavia, está o julgamento de que o presente – ou, ao menos, nossos valores – são perfeitos, e que a história é o progresso em relação a um futuro utópico. Um futuro que nós, os seres mais corretos e esclarecidos que já pisaram sobre a terra, faremos acontecer – nem que por meio do porrete.

As coisas erradas do mundo são “bárbaras”, “medievais”, “obsoletas”. Se a vida não é perfeita, a culpa é do passado que custa a morrer.

Já para outros  a ficção histórica é um remédio para a incerteza. Quando o “progresso” que veneramos começa a se mostrar perigoso e o futuro nos deixa dúvidas, o passado vira um porto seguro. É um país estrangeiro, um local onde podemos nos refugiar para encontrar respostas – e quiçá, recuperar algo do que nos foi perdido.

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É a mentalidade por trás das “eras douradas”, da veneração aos derrotados em guerras perdidas, da ideia de que nosso passado, por mais abjeto que pareça à luz do presente, é parte do que somos e não pode ser deixado para trás.

Nos melhores casos, essa visão nos traz releituras quixotescas de um ontem glorioso (e valioso). Nos piores, contudo, ela é responsável pelo revisionismo, anti-intelectualismo e obscurantismo.

Verdades conflitantes e desafios do mundo real trazem seus desassosegos. Se a resposta para cada angústia for a fuga a um mundo de fantasia, regrediremos a uma sociedade anterior à razão.

Eu já disse em outra ocasião como ambas as visões podem ser vistas na cultura pop quando o assunto é o Japão. Porém, o que há de ainda mais interessante na terra dos samurais é que ela inspirou também uma visão “média”.

O Japão dos palácios de Nagasaki, mas também das cabanas infestadas de insetos. O Japão sofisticado, mas desumano; artístico, mas insensível; apaixonante, mas amedrontador. O Japão, como Sebastião Rodrigues lamenta, promissor, mas terrivelmente cruel.

Estranho em uma terra estranha

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Endo não foi o único a ilustrar esse passado ambíguo, nem o que teve o maior alcance.

Shogun é um bestseller mais conhecido por inaugurar, ao lado de Raízes, a febre de mini-séries históricas para a TV. Um dos maiores sucessos editoriais do século passado, há quem credite o romance como responsável por abrir as portas do Ocidente ao Japão. E, por consequência, pela proliferação de animes, kanjis e restaurantes japoneses que hoje damos por normal.

O livro acompanha a história de ninguém menos que Will Adams (no livro, John Blackthorne), náufrago inglês que se tornou amigo de Tokugawa Ieyasu, primeiro samurai ocidental e o responsável pela centelha que fez eclodir as perseguições a católicos no shogunato.

Resgatado do mar após se chocar contra os rochedos japoneses, Blackthorne se vê cercado por inimigos. Protestante, piloto de um navio holandês na época em que os Países Baixos estavam em guerra contra a Espanha, sua mera presença é uma ameaça à imagem de uma Europa unida e pacífica que jesuítas tentavam pregar aos daimyos.

Os mercadores portugueses (na época, sob autoridade da Espanha) o temem porque é um concorrente e possível pirata. Os missionários o temem porque previam (corretamente) que ele comprometeria os esforços de conversão. E os nobres japoneses o detestam, pois seus hábitos lhes parecem bárbaros e ofensivos.

Graças à sua lábia, ele encontra um ombro amigo em ninguém menos que Tokugawa Ieyasu (no filme, Toranaga). Para o poderoso daimyo que desejava, ele próprio, virar o Japão de ponta cabeça, Blackthorne parece o aliado perfeito.

Sob a proteção de Toranaga, o piloto inglês se depara com uma cultura diferente de tudo o que conhecia. Por um lado, é uma terra de luxo, beleza e fartura. As roupas e etiquetas de seu povo rivalizam em sofisticação com qualquer corte europeia. Pessoas não têm vergonha de seus corpos e não há tabus sobre a sexualidade.

Por outro, é uma país cruel, desumano e opressor. Plebeus não têm nomes próprios e são designados pela sua profissão. Nobres “herdam” esposas de homens mortos e podem executá-las ou forçá-las ao suicídio. A hierarquia é absoluta, e a desobediência é punida com inclemência – e requintes de maldade.

Acima de tudo, é um país em que a vida humana não parece ter valor, e a morte é onipresente. Traidores e derrotados abraçam a morte por seppuku. Criminosos são sempre executados, independente da gravidade do delito. E samurais podem matar quem quiseram, da maneira que quiseram, pelo motivo que quiserem.

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Em um dos segmentos mais chocantes, Blackthorne é enviado a uma vila para aprender japonês. Se ele não estivesse fluente em 6 meses, diz seu superior, todos os habitantes seriam passados pela espada.

Não por acaso, é a mesmíssima imagem que Shusaku Endo invoca em sua fábula sobre a crueldade:

Ao chegar na entrada da aldeia, o miado baixo do gato se tornou cada vez mais audível. Em minhas narinas o vento soprou um terrível fedor que quase me fez vomitar. Era como o de peixe podre. Porém, quando eu adentrei a aldeia, eu me vi cercado por um silêncio estranho e amedrontador. Não havia uma única pessoa  lá.

Eu não vou dizer que era uma cena de desolação vazia. Pelo contrário, era como se uma batalha tivesse recentemente devastado todo o distrito. Espalhados por toda a estrada estavam pratos e copos quebrados, enquanto que as portas haviam sido arrombadas, de maneira que as casas jaziam abertas. O miado baixo do gato da cabana vazia parecia de alguma forma impudente, como se o animal estivesse espreitando descaradamente pela aldeia.

Por muito tempo eu permaneci aturdido e em silêncio no meio da aldeia. É estranho de dizer, pois eu não sentia nenhuma ansiedade, nenhum medo. A única coisa que continuava silencionamente a se repetir em minha cabeça era: por que isso? Por quê?

Em Shogun, esse choque cultural não está só no conteúdo, mas também na produção. Em uma decisão quase estapafúrdia de tão ousada, sua minissérie foi filmada em japonês sem qualquer legenda ou dublagem. Salvo os diálogos com seus inimigos ibéricos e com uma charmosa intérprete pela qual se apaixona, somos apresentado ao Japão como o foi Blackthorne: completamente no escuro.

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Um presente ao inimigo

De certa forma, Shogun Silêncio não poderiam ser mais diferentes. Ainda que contado sob a perspectiva de um estrangeiro, o livro de Endo expressa a dor de um japonês fascinado por uma religião que se diz universal, mas que parece incompatível a sua cultura – em suas próprias palavras, “uma muda plantada em solo estéril”.

Clavell vem de um mundo oposto, mas compartilha com Endo algo muito pessoal. Tal como o autor de Silêncio e sua discriminação religiosa, ele teve de pôr a limpo seus próprios traumas pessoais.

Na sua juventude, Clavell serviu no exército britânico e lutou na Segunda Guerra. Ele foi ferido em combate e capturado pelos japoneses, cujos destratos com prisioneiros incluiam trabalho forçado, mortes por exaustão e uso como cobaias humanas para o desenvolvimento de armas bacteriológicas.

Clavell teve sorte, pois foi remanejado para uma das prisões menos dantescas do Império Japonês. Entretanto, boa parte de seus colegas foi recrutada como mão de obra escrava e morreu por maus tratos. Em outra prisão na mesma cidade, prisioneiros chegaram a ser deixados sem água e sanitação por 5 dias em retaliação pela fuga de soldados.

Não seria surpreendente se Clavell desenvolvesse um ódio pelo Japão. Muitos veteranos da Guerra do Pacífico contaram ter sentido uma aversão parecida, a ponto de nunca terem conseguido perdoá-los. O escritor, que registrou diretamente suas experiências em outro livro, Changi, teria tudo para ser apenas mais um exemplo.

A verdade, no entanto, não poderia ser mais diferente. Nas suas palavras,

Shogun foi escrito com a expectativa de ser a ponte entre o Oriente e o Ocidente e para enriquecer e tentar explicar a Terra dos Deuses para o mundo ocidental. É uma história apaixonadamente pró-japonesa, concebida com carinho. De certo modo, é o meu presente ao Japão.

Que um ex-prisioneiro de guerra resolvesse dar “um presente” à nação dos seus velhos inimigos parece, à primeira vista, uma grande loucura. Contudo, nós talvez não devêssemos ficar tão surpresos.

A mente é o seu próprio lugar

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Eu já disse em outro artigo como Saburo Sakai, famoso ás japonês da Segunda Guerra, desenvolvou uma imensa admiração pelos Estados Unidos, a ponto de elogiar Paul Tibbets, o piloto que lançou a bomba em Hiroshima.

Caso ainda mais próximo é o do também escritor J.G. Ballard, grande nome da ficção científica. Nascido no distrito britânico de Shanghai, Ballard foi capturado pelos japoneses e confinado ao campo de concentração de Lunghua.

Em uma fase da vida em que a maioria dos jovens só pensa em se divertir e ser popular com as garotas, o futuro escritor testemunhou coisas que ninguém deveria ser obrigado a ver: espancamentos, falta de comida, civis forçados a caminhar em marchas intermináveis, morrendo de exaustão pelo caminho.

Apesar de tudo isso, suas memórias do cárcere não são ruins. Se ele frequentemente se deparou com o pior da crueldade humana, também pôde brincar, estudar, fazer amigos e ser um adolescente feliz. Sua relação com os capatazes do campo de concentração era similar a de um estudante rebelde para com a diretora de escola.

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Tratando-se de Ballard, é apenas lógico que sua história fosse terminar em literatura. Tal como Clavell, ele imortalizou sua experiência no romance Império do Sol, adaptado ao cinema por Steven Spielberg e Tom Stoppard.

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Quebrando o “Silêncio”

Em dado momento no romance de Endo, o “silêncio” que tanto angustia seu herói finalmente é rompido, e Cristo fala a Sebastião Rodrigues. Sobre o que ele diz, não darei spoilers. Se o contato com a divindade é um alívio ou o último dos tormentos – o abismo que nos olha de volta depois de ser encarado por muito tempo – caberá ao leitor julgar.

Mais importante é notar que esse foi um desafio que também Clavell e Ballard, cada qual à sua maneira, enfrentaram. Em suas guerras pessoais, cada um desses autores teve, assim como Rodrigues, de achar forças onde não sabiam se a iriam encontrar.

Como escreveu o crítico Roger Ebert sobre a adaptação de Império do Sol,

O filme cai na armadilha de tantas histórias de guerra e transforma terror em nostalgia. O processo é familiar. Experiências de guerra são brutais, dolorosas e trágicas, mas às vezes elas convocam o melhor nos seres humanos. E quando a guerra acaba, os sobreviventes eventualmente começam a sentir saudades daquele tempo em que eles haviam se superado, quando, nos melhores e piores momentos, eles viveram no seu auge.

O jovem Padre Rodrigues, zarpando ao Japão em uma missão suicida, disposto a virar mártir para ajudar cristãos perseguidos, não poderia concordar mais.

O ser humano tem uma enorme facilidade para aceitar a violência. Por incrível que pareça, isto vale também para a violência que sofremos. É apenas quando a dor se torna arbitrária, quando sentimos que o martírio não levará a nada, quando duvidamos da causa pela qual estávamos disposto a perder tudo, que o calafrio corre por nossas espinhas.

Quando percebemos que palavras grandes como “Deus”, “justiça”, “ordem”, “pátria” e tantas outras são bengalas para caminharmos por um mundo indiferente, precisamos buscar meios para “romper” o silêncio. Ou, então, aprender a aceitá-lo.