Quem tem o hábito de acompanhar mangás e animes já deve ter reparado que esse meio tem um pé no esotérico. Ao lado de mechas, uniformes escolares e doces baratos – muitas vezes, ao mesmo tempo – a cultura pop japonesa parece ter uma queda por magia e ocultismo.
Não qualquer magia, mas uma bastante específica – e distintamente ocidental. Cartas de tarot, círculos mágicos, símbolos do zodíaco, palavras em latim, referências bíblicas, nomes ingleses ou germânicos, sociedades secretas, trajes e apetrechos inspirados na maçonaria. Certos animes pagam tanto tributo ao ocultismo estrangeiro que poderiam se passar por um museu esotérico. De preferência, em algum lugar de Londres, ou na antiga “pequena Inglaterra” da Ásia: Hong Kong.
Em alguns casos, o misticismo está lá em doses homeopáticas, para dar aquele twist de estranheza. Madoka, por exemplo, criou uma meta-lore em latim – o que inclui até seu próprio título. Em outros, é acompanhado por toda uma elocubração filosófica, com direito a rituais, protocolos e menções a personagens históricas.
Dessas últimas, poucas séries apelaram mais para o exotismo do que Mahou Tsukai no Yome, ou The Ancient Magus’ Bride, um mangá despretensioso que conquistou a crítica e será adaptado em anime a partir desse ano. A obra não é só uma coleção do que há de mais peculiar na “magia de anime”, mas uma verdadeira jornada aonde tudo começou.
Através do espelho
Se uma personagem com um crânio de boi no lugar da cabeça não for suficiente para adivinhar, o mangá, escrito e desenhado por Kore Yamazaki, mergulha de cabeça no que há de mais diferente, bizarro e indecifrável no mundo do ocultismo.
A história segue Chise Hatori, uma garota abandonada que é feita escrava e vendida em um leilão. Quem a compra é Elias Ainsworth, um “mago” de aparência inumana (para dizer o mínimo). Ele revela à Chise que deseja transformá-la em sua aprendiz… e em sua esposa.
O que poderia dar pano para um terror exploitation dos mais macabros se desenrola, pelo contrário, em uma história surpreendentemente doce. Chise, que sempre viveu à deriva, vê em Elias a família que nunca teve. O mago revela, para a surpresa de ninguém, que não é humano, e usa a amizade com a garota para tentar compreender o mundo de uma espécie que lhe parece tão estranha.
O que se segue é uma jornada surreal pelo folclore europeu para esgotar qualquer enciclopédia de mitologia. O que xxxHolic fez com o terror japonês, The Ancient Magus’ Bride entrega com o ocultismo ocidental.
Seu mundo paranormal é surpreendente vasto, e inclui de “clássicos” como dragões e fadas a personagens mais obscuros: reimaginações kawaii das selkies (mulheres-foca da mitologia irlandesa) e will-o-wisps (luzes fantasmas),
Titania e Oberon, reis das fadas em Sonhos de Uma Noite de Verão, e personagens recorrentes nos quadrinhos de Neil Gaiman,
o Cão Negro, ou barghest, aparição do folclore inglês que inspirou O Cão Dos Baskervilles e que até já fez ponta em The Witcher,
e, como não podia deixar de ser, uma lore extremamente rebuscada, em que “magia” não é apenas truque, mas um sistema filosófico e espiritual próprio, quase uma ciência para um mundo além da razão.
The Ancient Magus Bride não inventou esse fascínio com o conhecimento místico. Pelo contrário, ele pode ser visto em obras das mais variadas, de X/1999 e Cardcaptor Sakura a Fullmetal Alchemist e Fate/Stay Night. O site TVtropes.com chegou a afirmar que a magia hermética – como ela foi chamada, em razão de sua proximidade com um movimento de mesmo nome – é hoje mais popular em animes do que em obras ocidentais, a despeito de seu flair inconfundivelmente europeu.
A princípio, é estranho que o país do xintoísmo, dos youkai e de um dos imaginários mais populares da cultura pop atual fosse dar tanta atenção ao folclore de outros lugares. Porém, em um olhar mais atento é possível ver que esses dois mundos aparentemente tão distantes têm muita coisa em comum.
Aurora dourada
Para entender como o ocultismo ocidental chegou ao Japão, é preciso primeiro entender de onde ele veio.
Como eu já mencionei em uma outra coluna, quando a ciência e tecnologia começaram a mudar o mundo, nem todos gostaram do que viram. Para alguns, o universo misterioso dos mitos e lendas era mais interessante do que as teorias científicas; a vida no campo mais suportável que nas grandes metrópoles, e o respeito à “voz da natureza” era mais digno do que a rotina endiabrada da nova era.
Alguns viram nisso inspiração para produzir arte, poesia e música. Outros, mais radicais, tentaram ressuscitar religiões do passado. Muitos, horrorizados com as barbaridades do mundo moderno, buscaram um sentido para a vida em outro lugar. Assim, o apelo do ocultismo, em suas mais variadas formas, começou a crescer.
Alguns se satisfizeram com filosofias alternativas. Por exemplo, a teosofia, doutrina mística que buscava entender a natureza e o lugar do ser humano para além do mundo aparente. O movimento ganhou vários adeptos no começo do século XX, inclusive o famoso pintor Piet Mondrian.
Já outros foram mais além, e preferiram grupos com mais pompa e circunstância. Ao mesmo tempo em que a sociedade se industrializava e as grandes teorias científicas começavam a dar frutos, algumas pessoas começaram a se organizar em seitas ou irmandades, com uniformes e rituais elaborados e um entendimento enciclopédico de magia e sobrenatural.
Foi dessa fonte que o universo estranho, complexo e minuciosamente catalogado da magia nos animes bebeu. Em alguns casos, a inspiração é declarada. Aleister Crowley, um dos mais famosos ocultistas da época, apareceu de nome próprio em Toaru Majutsu no Index, além de ter sido base para Clow Reed, criador das cartas Clow de Sakura.
A fascinação com a magia hermética foi tão forte na Europa – em especial na Inglaterra – que pelo menos um livro a considerou como o terceiro componente mais importante da cultura ocidental, ao lado da tradição bíblica e dos saberes greco-romanos.
Mas o que tudo isso tem a ver com o Japão? Acontece que, do outro lado do mundo, outras pessoas tiveram ideias bastante parecidas.
Em defesa da escuridão
O escritor japonês Junichiro Tanizaki certa vez disse que a diferença entre japoneses e ocidentais estava na sua relação com as sombras. Enquanto que o Ocidente busca a luz, a claridade e o “progresso” acima de todas as coisas, os japoneses aprenderam a aceitar a penumbra.
Isso se dava não só de uma forma literal – ambientes pouco iluminados, o gosto pelo escuro na arte – como em um sentido figurado. Para Tanizaki, a cultura japonesa preferia o misterioso ao revelado, o sutil ao direto, o despojado ao luxuoso, o imperfeito ao milimetricamente pensado.
Os ocidentais tratam a escuridão como inimiga; os japoneses viviam em harmonia com ela. Os ocidentais se preocupam em modificar o mundo, em torná-lo mais claro e explicável. Os japoneses, por outro lado, viam beleza no misterioso e irregular.
Se esse lamento lembra o misticismo europeu, não é por acaso. Quando o Japão abriu as portas para o resto do globo, as mesmas seitas, movimentos e filosofias que haviam chachoalhado o velho mundo repetiram o seu sucesso. Pouco a pouco, ao mesmo tempo em que a Terra do Sol Nascente se tornava um país do futuro, cartas de tarô, símbolos alquímicos e palavras em latim ganharam seu espaço na cultura popular.
Não foi só no entretenimento que o ocultismo ganhou adeptos. Mesmo autoridades tradicionais em filosofia oriental se renderam ao seu apelo.
D.T. Suzuki, um dos maiores divulgadores do budismo no Ocidente, não poupou palavras para apontar semelhanças entre o pensamento asiático e essa “contracultura” espiritual europeia. Ele se casou com uma adepta da teosofia e se tornou um ávido leitor de místicos europeus. Em especial, Emanuel Swedenborg, criador de uma seita mística derivada do pensamento cristão.
Na cultura pop japonesa, essas leituras alternativas (quando não conspiratórias) da doutrina da Igreja eventualmente se tornaram inseparáveis à imagem da magia ocidental. Vide a frequência com que padres e freiras, geralmente com poderes ou armas badass, dão as caras em séries do gênero.
Esse sincretismo pode ser visto a todo momento nos animes. Em X/1999, os Sete Anjos e Selos – em si próprios uma referência ao livro do Apocalipse – combinam poderes inspirados por escolas orientais de ocultismo (como o Onmyoudou) com magia ocidental.
Já em Kara no Kyoukai, os ex-colegas da feiticeira Touko são Cornelius Alba, descendente do ocultista alemão Henrich Cornelius Agrippa – famoso a ponto de ganhar menção em Harry Potter – e Soren Araya, um monge budista.
A adoração de animes e mangás por essas correntes do ocultismo são uma das facetas mais divertidas da subcultura que criaram.
Muita gente defende que cultura “otaku” não é cultura japonesa, apenas uma releitura ocidentalizada das tradições do Japão. Com a magia hermética, no entanto, diretores e mangakás fizeram o percurso contrário. Ao se apropriarem de uma convenção importada do ocidente, eles criaram um estilo inconfundivelmente japonês.
De que tiveram sucesso, não há dúvida. Já duas vezes na minha vida, ao falar sobre Paraíso Perdido a amigos otakus, recebi a mesma resposta: “Parece legal. Tem OVA?”
Faça o teste você também. Da próxima vez que ver um círculo mágico, veja qual é a primeira torre que vem à mente: a de Londres ou a de Tóquio.
Comentários
Achei seu texto genial. O que vejo na animação japonesa é justamente esse elo forte com culturas e obras muito sofisticadas, como são, por exemplo, as do ocultismo ocidental. Como se não bastasse, sua releitura do ocidentexoriente foi ótima, retrata muito bem o que me atraiu para a cultura japonesa. Parabéns!
Fantástico.