Quando vi o trailer de Sakura Card Captors no Cartoon Network pela primeira vez, inventei um motivo para faltar na escola para não perder a estreia. Como não podia simplesmente desaparecer do mundo para ver todos os 70 episódios (mais as reprises), aprendi às pressas a programar o gravador de cassetes. Em questão de semanas, as prateleiras da minha casa estavam repletas de fitas etiquetadas.
Eu cheguei a criar um fanclube entre meus amigos. Fizemos planos para publicar uma revista sobre a série, que obviamente nunca vingou. Em um mundo sem blogs, a ideia de crianças escreverem sobre qualquer coisa ainda era um sonho distante.
Eu poderia continuar, mas sei que não preciso: cada um de vocês têm histórias muito parecidas. De fato, começo esse post com esta confissão não porque ela é única, mas justamente porque é muito comum.
O meu comportamento – e o de boa parte da minha geração – foi o modus operandi de toda uma uma fanbase. E para mim – e, suspeito, boa parte da minha geração – nada me preencheria com mais alegria do que saber que a série poderia continuar.
O dia tardou, mas parece ter chegado. Fãs de Sakura já devem ter se deparado com a notícia de que a série de maior sucesso da CLAMP voltaria às telinhas para uma nova temporada.
O rumor, espalhado sobretudo por páginas latino-americanas, tem sua origem em um edição especial da revista japonesa Animedia lançada dois anos atrás, na celebração do aniversário de 15 anos do anime. Nela, o produtor da série, Eizo Kondo, manifestou o interesse em voltar aos mares.
O leitor que entenda japonês pode ver a notícia diretamente em sua fonte:
Há um grande salto entre a opinião de um produtor e um novo lançamento. Porém, se Sailor Moon Crystal e Dragon Ball Super são algum indicativo, estamos em uma época ideal para esse tipo de retorno. A avalanche de merchandise oficial que chegou ao mercado confirma que estamos diante de uma renascença de Sakura.
No entanto, se Tsubasa Reservoir Chronicles me ensinou alguma coisa, é que o passado é o passado e o presente é o presente. Como bem disse Jorge Luís Borges, não há sentido em reescrever Dom Quixote. Uma obra dos nossos tempos nunca será igual à sua antecessora.
A CLAMP não é tão velha quanto Cervantes. Mesmo assim, muita coisa mudou desde o lançamento de Sakura em 1998. E não apenas nos animes, mas também naqueles que os assistem.
O que aconteceu com os fãs?
Cinco anos atrás, o comediante americano Patton Oswalt publicou um artigo chamado Acorde, cultura geek. Está na hora de morrer.
Em nossa época de orgulho nerd, em que convenções de anime reúnem trekkies, estandes de Harry Potter e colecionadores de Lego, o título é de coçar a cabeça.
Oswalt, no entanto, tem um ponto. Para ele, a “cultura geek” nunca existiu.
30 anos atrás – diz ele – não havia nada em comum entre jogadores de D&D, fãs de Star Trek, leitores de quadrinhos autorais underground e espectadores de Space Battleship Yamato. O que unia as diversas tribos não era um conjunto de paixões em comum, mas a devoção com a qual se dedicavam a suas obras mais queridas.
A chave aqui é a internet – ou, melhor dizendo, a ausência dela. Em um mundo sem google, redes sociais e informação infinita, ser um fã dava muito mais trabalho. Era preciso correr atrás de lançamentos, acompanhar revistas físicas – algumas estrangeiras –e se fiar em especulações de todo tipo.
Mais: o tempo entre um lançamento e outro era tão grande que a obsessão vinha naturalmente. Sem um backlog de 400 jogos no steam ou uma série nova no Netflix a cada três meses, não havia escolha senão assistir reprises e memorizar linhas de diálogo.
É por isso que fãs de Star Wars faziam festas de lançamento para os livros do universo expandido. É por isso que colecionadores de action figure corriam atrás de catálogos para ver o que faltava em suas coleções. É por isso que fãs de anime se organizavam em mailing lists trocando informação privilegiada do que acontecia no Japão – produzindo no caminho volumes infindáveis de fanfic.
Nas palavras de Oswalt, ser um otaku – palavra que ele usa no sentido original, como um fã inveterado de qualquer coisa – implicava em construir seu próprio “mundo imaginário” para organizar sua paixão pelos hobbies.
Se isso hoje parece meio demodé, é porque o mundo mudou. O Crunchyroll e outros serviços de streaming permitem que assistamos a animes com meras semanas de atraso. Canais especializados nos permitem conhecer o fim de uma série antes mesmo de toparmos com o primeiro episódio.
Trinta anos atrás, para descobrir quem é Jéssica Jones seria necessário acampar em sebos de quadrinho e passar alguns meses enterrado em pilhas de gibi. Hoje, qualquer fã do seriado pode em questão de minutos consultar a wiki e recitar a primeira aparição do Homem Púrpura.
Para quem teve de sofrer com as edições irregulares de Ranma 1/2 da Animangá, com material licenciado de segunda mão dos EUA, ou com os cortes que os animes recebiam na TV aberta, não há dúvidas de que a mudança foi positiva.
Por que, então, Oswalt quer que tudo isso desapareça?
Por que, para o comediante, eram justamente as dificuldades em se acompanhar as pérolas da cultura pop que criavam grandes fãs. A informação de mão beijada, pelo contrário, produz “otakus ruins” que têm “rolos” e não paixões; “passatempos” e não “mundos virtuais”. Fãs como esse podem bastar no curto prazo, mas, como eu argumentei em outra ocasião, vão tão rápido como vêm.
Creio, no entanto, que Oswalt foi pessimista demais. Existem ainda sinais da “velha fandom” dos anos áureos. Você a percebe nos fanáticos que criam infográficos superdetalhados sobre séries de TV, nos contribuidores das wikis que espectadores casuais consultam e em autores de obras de arte como essa:
Isso, é claro, sem falar no mundo dos AMVs, cosplays e fanarts, que continuam fortes a despeito de eventuais escaramuças com a justiça.
O que esperar de um novo Sakura nesse momento?
Anos atrás, escutei uma garota em um dos corredores da faculdade queixando-se sobre a ignorância dos “jovens”. O motivo da indignação era uma criança que, aparentemente, nunca havia ouvido falar de Sailor Moon.
Como seria possível – ela pensava – que o marco máximo do anime shoujo, melhor desenho dos anos 1990, hoje fosse relegado ao esquecimento?
Méritos da Toei à parte, imagino que Sailor Moon Crystal tenha acalmado um pouco as suas angústias. Muitos criticam – e com razão – o hábito de produtores de transformarem séries em “vacas leiteiras”.
Contudo, é apenas com material novo que se conquista os corações dos novos. Não fossem os 1397984 finais alternativos e as toneladas anuais de figures, Evangelion provavelmente não seria um dos animes mais conhecidos de todos os tempos.
Sakura é uma série mais jovem. Mesmo assim, um remake ou uma sequel do clássico da CLAMP tem o potencial de cumprir uma função semelhante.
Independente do que aconteça, é importante ter em mente que teremos um anime criado para os nossos “tempos de fartura.” Não há mais incertezas, margens para rumores ou grandes surpresas. Teremos a lista dos dubladores com um mês de antecedência, o preview do opening em nossos fones de ouvido na semana do lançamento, e o press release sobre a segunda temporada antes mesmo do episódio final.
Mais do que isso – e tal como Sailor Moon Crystal – ele não será, jamais, um marco comparável ao desenho de nossa infância. A era dos grandes animes infantis acabou, pelo menos para nós, que acompanhamos do Ocidente. Sem o privilégio de reprises intermináveis para fixá-lo no imaginário coletivo, um novo Sakura será apenas mais um shoujo, competindo em uma temporada com outros títulos de peso.
O fã hardcore também faria bem em conter seu purismo. A CLAMP “limpou” seu traço nos idos de 2006, então não há razão para esperar o mesmo estilo do desenho original. Alguns dubladores terão de ser alterados. Tal como tudo na fase pós-Tsubasa, fillers com crossovers são quase garantidos.
Isso, por si só, não é um problema. Afinal de conta, uma fandom é mais do que um simples produto, e cabe aos fãs espalharem suas paixões. Ainda há espaço para os “mundos imaginários” de outrora. Nós só precisamos mantê-los vivos.
Comentários
Eu também estudava a tarde e sempre que podia, faltando ou chegando cedo da escola, assistia Sailor Moon e na sequência Sakura. Que nostalgia seu post me deu agora! <3
Concordo com você, novas figures, remakes, novas versões de mangás fazem muitas vezes os animes como Sakura e Sailor Moon serem lembrados e vistos não só pelos fãs ávidos, mas por um público curioso e ansioso por novidades. De qualquer forma, há quem deteste essa exploração em cima da franquia.
Eu fico tranquila quanto a isso. Se fosse me incomodar com as 24344 de figures de Madoka Magica lançadas todos os anos eu ficaria doente, hahah.
Nossa, incrível seu texto, eu penso muito a respeito disso, como a, não só o Mundo Geek, mas a “Cultura Pop” de uma maneira geral se tornou descartável de um modo geral. Que toda a facilidade ao acesso de vários conteúdos nos faz valorizá-los muito pouco.