Lançamentos são mágicos. Em especial os de uma das franquias mais amadas de todos os tempos, como é o caso de Star Wars. Eles transformam o maior dos rabugentos em um fanboy de carteirinha e nos fazem enxergar o lado bom das coisas.
Não posso dizer que o Despertar da Força não tenha me provocado um efeito similar. Entretanto, agora que os rumores já deram lugar aos trailers e já estamos todos lutando por espaço na pré-estreia, não consigo deixar de pensar em algo que causou certo frisson ano passado.
O que será do universo de Star Wars, que certos fãs levaram anos a compreender, agora que sua linha do tempo foi “zerada” e sua galáxia se torno um quadro em branco?
Uma nova esperança
Para quem não se lembra, eis o resumo da ópera: após comprar a Lucasfilm, a Disney anunciou que o universo expandido de Star Wars seria considerado não-canônico – isto é, não mais faria parte da continuidade ou lore oficiais. Suas obras existentes seriam mantidas sob o selo Star Wars Legends, mas ele estaria, para todos os fins, abandonado.
Mais importante, todas as novas produções feitas à propriedade intelectual daqui para frente seriam consideradas canônicas. Se antigamente os filmes de George Lucas ocupavam um patamar mais alto na hierarquia de “verdade” da franquia, agora filmes, spin-offs e standalones estarão no mesmo patamar. Para todos os fins, a Disney parece querer transformar Star Wars em um multiverso cinemático, da maneira como fez com a Marvel e tantas outras propriedades intelectuais.
Talvez levemos algum tempo para entender toda a dimensão da mudança, mas alguns efeitos podem ser vistos desde já. A LucasArts foi fechada, e a ordem do dia foi produzir menos games, de melhor qualidade. Para a EA, incumbida das honras, isso quis dizer um reboot de Star Wars: Battlefront.
Uma nova série, Star Wars: Anthology, pretende lançar longas standalones nos intervalos dos filmes “titulares” da série. Em outras palavras, poderemos esperar um novo Star Wars a cada ano, um ritmo para todos os fins alucinante. E, segundo Pablo Hidalgo, membro da Lucasfilm e editor da Complete Star Wars Encyclopedia, as decisões criativas tornaram-se muito mais “horizontais”, sem a obrigatória deferência ao mestre Lucas.
Para marcar a mudança, veteranos do império de Lucas e novos nomes se juntaram para um vídeo de despedida, em que expunham seu amor pelo universo expandido:
Mudá-lo para salvá-lo
Se essa novidade é boa ou ruim é uma discussão ferrenha, como não podia deixar de ser a uma franquia lendária de mais de 30 anos. Eu mesmo, quando do anúncio da compra pela Disney, disse que tirar Star Wars das mãos de George Lucas era a melhor coisa que poderiam fazer à propriedade (embora não estivesse pensando exatamente nisso).
Eu não fui o único a brindar a mudança. Lee Hutchinson do Ars Technica disse que o universo expandido era um câncer, uma massa embolorada que crescia para todos os lados, repleta de “atrocidades literárias ilegíveis”. Achar trabalhos que prestem na massa de produções de qualidade duvidosa seria equivalente a encontrar as joias da Coroa em um mercado de pulgas.
Há, obviamente, muito no universo expandido que marcou época. Shadows of the Empire e a trilogia Thrawn, os quadrinhos Tales of the Jedi e Legacy, os games X-Wing, Dark Forces/Jedi Knight e Knights of the Old Republic. No entanto, é difícil negar que a maior parte de suas obras não traz nenhuma honra ao logo na capa.
Kathleen Kennedy, presidente da Lucasfilm, tem um argumento mais pragmático: os cineastas precisarão estar livres para criar, e não presos a dezenas de milhares de obras obscuras e por vezes contraditórias. Se fôssemos esperar que cada diretor decorasse a Wookiepedia e produzisse um longa inédito respeitando o cânone, nunca mais teríamos filmes de Star Wars.
Há quem diga que essa complexidade também afasta novos públicos, preocupação que a Disney mostrou ser seu objetivo número 1. Sob sua batuta, o não menos confuso, contraditório e artisticamente inconsistente universo Marvel se tornou uma potência capaz de duelar (e vencer) qualquer líder de bilheteria. Star Wars com certeza irá além. Ao menos um analista já disse esperar que O Despertar da Força se torne o filme mais visto da história, superando o recorde de Avatar.
Que a Corpore tenha até organizado uma corrida inspirada na série não é mera coincidência. A profecia de Bill Gate se cumpriu: os nerds dominam o mundo, e sua subcultura deixou de ser “sub” para virar o mainstream. Ratos de porão, paperbacks amarelados e jogos truncados de PS1 são coisa do passado.
Mesmo assim, tal como Han Solo, por algum motivo tenho um pressentimento ruim sobre isso.
O charme do caótico
Há algo de especial na “massa embolorada” do universo expandido, em sua qualidade de fanfic e na sua falta de coesão. E não falo das coisas boas que nos foram deixadas. Não há dúvidas de que a Disney se aproveitará do melhor. As especulações sobre o roteiro do Episódio VII estão recheadas de alusões ao universo expandido. De minha parte, basta olhar para Kylo Ren para ver que os artistas conceituais andaram jogando KotOR:
Antes, o diferencial do universo expandido estava na maneira como era feito, desprovido de centro. Sua “confusão” era fruto de cabeças diferentes colocando no papel visões muito próprias (e conflitantes). Algumas até viravam a franquia de ponta-cabeça, substituindo o binarismo Jedi/Sith por uma reflexão moral de peso, ou explorando um passado realmente muito distante.
Não é de se espantar que a produção tenha sido comparada às fanfics: muitos dos profissionais do império de Lucas – incluindo os compiladores da Complete Encyclopedia – começaram a carreira como fãs.
Um dos casos mais emblemáticos é o de Chad Vader, uma esquete de YouTube protagonizada por um “primo pobre” de Darth Vader que tenta se tornar gerente de um supermercado no Wisconsin. A série faturou o Official Star Wars Fan Film Award em 2007. Não fosse o bastante, George Lucas ficou tão impressionado com a performance de seu criador que ele se tornou dublador “oficial” de Vader no game Star Wars: The Force Unleashed.
Convergência ou divergência?
O cientista da comunicação Henry Jenkins chamou o momento em que vivemos de uma cultura da convergência. Ela seria composta por uma nova geração de consumidores participativos, dispostos a buscar e misturar conteúdo oferecidos em vários meios, e de provedores de conteúdo ansiosos por cativar esse público. Há uma vontade crescente dos fãs de “entrarem” nas franquias que amam e se tornarem, eles também, criadores, e uma apreensão das corporações de perderem o controle sobre suas propriedades intelectuais.
Jenkins sem dúvida via a cultura da convergência em Star Wars, tanto é que colocou um cosplayer de stormtrooper na capa de um de seus livros. No entanto, estaria a convergência com os dias contados?
Antes de tudo, quero dizer que não me identifico com o anti-corporativismo do mundo nerd. Prefiro ser chamado de “drone da EA” a me associar ao tipo de “fã” que faz review-bombing de jogos ou assedia representantes comerciais. E é sempre bom lembrar que a Disney está longe de ser hostil a seu público. Prova: já contrataram o próprio Henry Jenkins como consultor em uma de suas divisões.
Nada é para sempre
O problema é que, historiador que sou, não consigo deixar de pensar que as coisas sempre mudam. E não apenas as roupas que vestimos ou os aparelhos que usamos para escrever, mas também valores, ideias, preferências, identidades. O motivo de orgulho de um sujeito, vinte anos depois, será sua fonte de vergonha. O que nos comove na juventude nos entedia na vida adulta. A grande causa de uma geração é a picuinha da seguinte. Como disse Jolee Bindo, personagem do game Star Wars: KotOR, não pense que a sua guerra é a mais importante só porque você está nela.
Assim, pergunto-me o que será desse “mundo dos nerds” quando a novidade acabar. Quando as mil e uma lojas com “geek” no nome falirem e as empresas pararem de pagar funcionários de cosplay para vender serviços em convenções. Quando os desvairios políticos do momento forem varridos por novas cruzadas, a nostalgia dos anos 1990 for substituída pela nostalgia dos anos 2010 e os estúdios engavetarem filmes de super herois tal como uma vez já engavetaram os faroestes do John Ford.
Os nerds vão sobreviver. O passado mostrou que eles são uma espécie resistente, adaptava a viver em nichos isolados. É por isso que olhamos para Forry Ackerman e Tove Jansson e vemos paixões em comum, muito embora eles fizessem suas ‘nerdices’ quando os criadores da subcultura ainda usavam fraldas.
Já o futuro da grande mídia quando o público mainstream migrar para outras paragens é mais incerto. Algumas obras sempre se salvam. Outras, talvez, serão reinventadas décadas depois, como o foram Mad Max e Caça-Fantasmas. No entanto, como as pilhas de VHS mofados em mercados de pulga provam, a maioria sempre desaparece.
A Disney sempre respeitou a sua história, mas é mais fácil respeitar Fantasia do que Infinity War: Parte 2, ou seja lá qual sequel-da-sequel estaremos assistindo daqui há alguns anos.
Sem o dinamismo desse “câncer” de fãs-criadores e seus trabalhos que parecem fanfic, estamos reféns de produtores que vêem no legado de Lucas o ganso dos ovos de ouro – e que podem, como na fábula, um belo dia decidir por abatê-lo. Sem uma separação canônica entre os seis filmes do “mestre” e os spin-offs, um zumbificação da franquia causará um dano muito maior à imagem da marca. E, com filmes anuais, esta zumbificação já pode ser vista do horizonte.
Pode ser que dê tudo certo. Mas é bom lembrarmos que vivemos em um mundo em que corporações não estão acima de cancelarem gibis e cortarem personagens para que o dinheiro não caia em mãos erradas, nem de sentarem em cima de direitos de exibição, fazendo reboots meia-boca a cada 5 anos para que outros estúdios não lucrem com aquilo.
O mundo corporativo não foi criado ontem, e esses problemas sempre estiveram aí. A diferença é que, com a explosão da onda nerd, nossos hobbies da juventude viraram o cabo-de-guerra da vez. No virar do milênio, experimentamos o lado bom de se tornar popular e “trendy”. Agora começamos a engolir a parte amarga.
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