Quando pensamos em “pai do mangá”, o primeiro nome que vem à cabeça é quase sempre Osamu Tezuka. Entre seu pioneirismo em praticamente todos os gêneros, a influência de seu trabalho nos filmes da Disney e as inúmeras graphic novels premiadas, é impossível olhar para uma gibiteca e não ver a marca do autor de Astro Boy em praticamente tudo.
De que sua fama é merecidíssima não há nenhuma dúvida. Contudo, Tezuka é um daqueles artistas que, de tão famosos, acabam ofuscando até mesmo os outros gênios. É o caso de seu contemporâneo Shigeru Mizuki, outro pioneiro do mangá que ganhou destaque nos anos 1950 e não parou de brilhar.
Dizem que uma imagem vale mil palavras. No caso de Mizuki, isso é triplamente verdade.
Sim, esse senhorzinho com idade para ser seu bisavô é um dos pais dos mangakás. Nascido em 1922, ele é seis anos mais velho que o próprio Tezuka. Sim, ele está segurando um prêmio Eisner, o Oscar dos quadrinhos. E este não é o único: até hoje, três obras suas faturaram estatuetas. Sim, ele não tem um braço. Em 1942, Mizuki foi convocado à guerra pela marinha japonesa. Na Batalha de Rabaul, a cabana em que dormia foi atingida por um bombardeio aliado. Ele voltou com vida, mas não inteiro.
O episódio ganharia vida pela sua própria pena, décadas depois:
Como todo veterano de guerra, é de se esperar que suas experiências mais traumáticas fossem inspirar alguns de seus trabalhos. Souin Gyoukusai Seyo!, ou Onward Towards Our Nobles Deaths, na tradução americana, foi seu primeiro (e muitíssimo bem recebido) relato de seus anos de combate. Contudo, Mizuki é muito mais do que um sobrevivente com histórias para contar. De certa forma, suas maiores batalhas foram travadas depois do fim da guerra. Vivendo na pobreza de um Japão em ruínas, o artista foi um dos pioneiros que decidiu transformar o desenho japonês em um meio artístico completamente novo.
Do teatro popular à cultura otaku
Nos anos 1950, sem um tostão nos bolsos e muito talento para esbanjar, Shigeru Mizuki começou a trabalhar com kamishibai. Trata-se de um estilo de performance tradicional em que um narrador conta uma história amparado por uma série de ilustrações. A prática surgiu em templos budistas como forma de pregação, mas eventualmente ganhou vida própria como um entretenimento de rua. Para quem está curioso, várias apresentações podem ser encontradas no YouTube, tanto em japonês como em inglês:
Mizuki passou seus primeiros anos após a guerra desenhando esses cartazes de papel. Para seu desespero, o kamishibai logo não se mostrou suficiente para fechar as contas no fim do mês. Felizmente, outra forma de entretenimento conquistava espaço entre a população de Tóquio.
Assim, quase que por acaso, o ex-soldado se tornou um dos pioneiros do mangá. Seu sucesso na nova arte não significou o abandono da tradição com que crescera. Pelo contrário, Mizuki viria a se tornar um dos mais conhecidos autores de quadrinhos de youkai, monstros típicos do folclore japonês. Suas ilustrações combinaram um traço estilizado, debochado e um detalhismo digno das gravuras do Período Edo (1603-1868)
Se eu fosse listar e comentar toda a sua obra, é muito provável que esse post jamais terminasse. Em cinco décadas de carreira, é mais fácil mencionar os prêmios que Mizuki não recebeu do que contar as estátuas, medalhas e diplomas que já passaram por sua mão. Quem visitar Sakaiminato, sua cidade natal, encontrará a Rua Shigeru Mizuki, batizada em tributo a ele e decorada com estátuas de bronze de suas personagens.
Sua criação mais famosa, Hakaba Kitarou, mais conhecido como GeGeGe Kitarou, tornou-se um dos clássicos mais adaptados da história do mangá, com 6 animes e 15 games, do Famicom ao Nintendo DS.
É justamente sua versatilidade e irreverência que fazem de seus trabalhos autobiográficos tão impressionantes. Guerra é sempre um assunto delicado, em especial um conflito que matou 70 milhões de pessoas e culminou em dois ataques nucleares. Não há falta de pessoas que se puseram a desenhar sobre o assunto, mas o resultado sempre anda no fio da navalha entre o ridículo e o horrorosamente chato. Neste sentido, Mizuki não só fez um dos melhores quadrinhos de guerra que já vi, como nos deu uma lição de vida.
Como já disse várias vezes, o Japão tem um problema com sua história. O governo até hoje reluta em admitir os crimes contra a humanidade cometidos por Hirohito. Figurões do estado maior da cúpula fascista foram sepultados com honras de Estado e até hoje recebem visitas oficiais. Se está difícil mentalizar o absurdo, imagine a Angela Merkel abrindo o ano legislativo com uma cerimônia no mausoléu de Adolf Hitler. Colocando lenha na fogueira, uma parcela de intelectuais (incluindo mangakás) defendem que o Império do Japão estava “certo”, que as proezas da Marinha Imperial devem ser relembradas com orgulho e que as ocupações da China, Coreia, Indochina e quase todo o Pacífico foram uma guerra “defensiva” para proteger os pobres asiáticos do imperialismo ocidental.
Shigeru Mizuki, ele mesmo um fuzileiro da Marinha Imperial, tinha todos os motivos para seguir na linha. Se nada mais, sua biografia tica todos os quadrados de melodramas patrióticos sobre “o sofrimento de nossos veteranos” como Zero Eterno. Mizuki, no entanto, fez exatamente o contrário.
A época em que a vida não pertencia às pessoas
Showa: A History of Japan é a versão do ex-soldado sobre esse período tão conturbado. É uma apaixonante autobiografia, de onde vieram as ilustrações das anedotas de sua vida que usei acima. É, também, uma das mais longas, tocantes e sinceras histórias do Japão moderno.
Showa é tanto um relato pessoal quanto uma biografia coletiva das mais de 70 milhões de pessoas que viveram (e, em muitos casos, morreram) entre o Grande Terremoto de Kanto e o final dos anos 1980 – a época, como o título já entrega, conhecida como Era Showa. Em seu estilo característico, Mizuki mistura paineis ultrarrealistas, baseados em fotos de época, ao traço irreverente de seus mangás sobre youkai. Quem puxa a história é Nezumi-Otoko, um espírito trapaceiro do universo de GeGeGe Kitarou. Ao longo de mais de 2000 páginas, nós o vemos ora como um narrador onisciente, ora como uma aparição, conversando com personagens como Hideki Tojo e Yosuke Matsuoka.
O resultado é uma fusão entre a densidade de Notas Sobre Gaza de Joe Sacco com a leveza de Maus de Art Spiegelman. Mizuki conseguiu criar um comentário sobre o totalitarismo no Japão que é complexo tanto quanto é acessível. Showa nos mostra com riqueza de detalhes como uma nação empobrecida por uma crise econômica gradualmente cede a um extremismo político que terminaria por destrui-la. Em suas páginas, vemos como a bravata das autoridades levou um país economicamente insignificante a travar uma guerra que jamais poderia ganhar – e seu povo a pagar o preço amargo da derrota.
Mizuki conta mais do que julga, e nisso está a maior força de seu trabalho. Ele não acredita no “pacifismo poliana” de Miyazaki e na sua visão da guerra como um mal inconcebível. Ao longo dos volumes, vemos como uma série de fatores – político, econômicos e ideológicos – se combinam para trazer o conflito, e como uma boa parte da população (incluindo seu próprio pai) era favorável ao fascismo. Mais tarde, ele argumenta ainda que a ocupação militar americana e o envolvimento do Japão na Guerra da Coreia enriqueceram o país.
Ele não compra a apologia ao heroismo de Naoki Hyukuta. Pelo contrário, deixa claro que a guerra foi um castelo de cartas erguido com mentiras. Mizuki narra como o exército japonês sabotou suas próprias operações para culpar inimigos imaginários e justificar uma invasão contra a China, como estatísticas propagandísticas levaram a derrotas desnecessárias e como comandantes forçavam suas tropas ao suicídio mesmo quando a vitória era possível.
Por fim, ele é apaixonadamente contrário a Yoshinori Kobayashi, que prega que as atrocidades cometidas pelos japoneses são invenções do Ocidente. Mizuki não poupa tintas para descrever o Massacre de Nanking ou a Marcha da Morte de Bataan. Ao mesmo tempo, ele não tem medo de colocar sua opinião quando acredita que há dúvidas sobre os verdadeiros culpados. De certa forma, a questão é pessoal. Seu próprio irmão, também soldado, foi condenado e preso como criminoso de guerra por executar um prisioneiro aliado.
As intervenções de seu narrador youkai e o tom leve com que narra a sua própria trajetória não prejudicam a mensagem do livro. Pelo contrário, só fazem da tragédia ainda mais assustadora. Em dado momento, um companheiro de Mizuki é ferido em combate. Sem chances de resgatá-lo, Mizuki recebe ordens para decepar o dedo do moribundo. É costume japonês que ao menos um osso do morto seja guardado para as cerimônias fúnebres. Se ele vai morrer de qualquer jeito, que pelo menos sua família tenha um funeral digno.
Um pouco antes, logo após a guerra ser declarada, acompanhamos Mizuki largando a escola. Sem a mínima vontade para estudar ou trabalhar, ele passa todo o seu tempo no quarto lendo filosofia. Quando lhe cobram satisfações, sua resposta é de dar frio na espinha:
Showa está recheado de episódios como esse. Em dado momento, Mizuki nos conta que as “Três Balas Humanas“, um trio de jovens soldados que tiraram a própria vida para explodir uma trincheira chinesa, só fizeram o que fizeram porque esperavam voltar com vida: o pavio da bomba havia sido acidentalmente cortado mais curto do que deveria. Em outro, ele relata como, ao saber da sobrevivência de sua unidade, seus oficiais superiores tentaram executá-los. Como eles já haviam comunicado o “suicídio glorioso” ao Imperador, ficava mais fácil matá-los do que explicar o erro.
Aqui está talvez o maior mérito do mangá. Mizuki não nos mostra apenas como é viver em um regime totalitário, mas o que, de fato, significa o totalitarismo. Sob uma ideologia que prega o controle do Estado sobre tudo, a vida humana se torna apenas mais um recurso – como dinheiro ou combustível – a ser “gasto” conforme as necessidades.
Hoje, setenta anos depois, esse mundo nos parece um pesadelo. Muitos, se sujeitos a essas condições, apelariam ao revanchismo. Shigeru Mizuki preferir contar histórias. Há uma certa poesia em sua atitude que vai além da própria beleza de seus mangás.
Cerca de 3 milhões de japoneses morreram na Segunda Guerra Mundial, mais ou menos 4% da população do país. Nada garantia que Mizuki não se tornasse um deles. Para um jovem combatente servindo no final da guerra os números eram ainda piores. Contra todas as expectativas, Mizuki não só sobreviveu como viveu mais que o próprio imperador, morto em 1989. Seu mangá é mais que uma lição de história: é um ato de liberdade de um homem que, à sua maneira, triunfou sobre a Era Showa.
Cara, o que me surpreendeu foi a superação dele!! Virou mangaká apesar de ser mutilado de guerra.
Tem outro gênio do mangá que poucos lembram também.
Shotaro Ishinomori. (Kamen Rider, Cyborg 009)
Sensacional a matéria!!! Parabéns!!!