The Witcher 3: The Wild Hunt colocou a saga de Geralt de Rivia no mapa de um jeito que seus dois predecessores na franquia nunca imaginaram. O game é um dos campeões de vendas do ano e um sério candidato aos prêmios de Game of the Year. Como geralmente acontece, o sucesso também deu visibilidade para seu material de origem: a premiada série de livros de Andrzej Sapkowski.
Para a maioria dos gamers, essa é uma informação para ouvir e esquecer. No senso comum, games e literatura não combinam um com outro, e o resultado da mistura geralmente é sofrível. A vida é curta demais para perder tempo com romances mal escritos.
Abaixo, faço minha tentativa para mudar o senso comum e convencê-los de que The Witcher é uma leitura de tirar o fôlego.
1- Os livros NÃO SÃO spin-offs dos jogos
Acho que não dá para falar sobre os livros do Witcher sem começar por isso. Já há algum tempo jogos e séries de fantasia têm faturado com romances baseados em seus universos. Estas histórias vão do divertido ao completamente ilegível. Às vezes, elas são escritas pelos próprios roteiristas dos games. Às vezes, são obra de uma legião de ghost writerssob um nome fantasia. Nos piores casos, são tão horríveis que mesmo fãs desse tipo de literatura queimam exemplares e colocam o vídeo no YouTube.
De qualquer forma, são aqueles livros impressos em papel jornal com capas coloridas quase idênticas, que a maioria das livrarias segrega em um lugar ‘especial’. Há um juízo de que eles não são livros ‘de verdade’; apenas manobras de marketing para “ordenhar a vaca”: tirar mais dinheiro de uma franquia de sucesso.
The Witcher não é um desses livros.
Aqui, acho que temos um exemplo raro do caso de obras que acabam prejudicadas pela fama. The Witcher começou com uma série de contos, originalmente publicados pela revista polonesa Fantastyka em 1986. A primeira edição saiu em 1992, dando início a uma franquia de sucesso que hoje conta com oito volumes, muitos já traduzidos ao português. Andrzej Sapkoswki não joga nem tem interesse algum em jogar videogames. Isto nunca fez parte de seu mundo.
Sapkowski também não é apenas um escritor de fantasia. O autor, que hoje está com 67 anos (a mesma idade de George R.R. Martin), já escreveu uma série de romances históricos, incluindo um ciclo sobre as Guerras Hussitas no século XV e mesmo um romance sobre a invasão soviética do Afeganistão.
Para nós, do extremo ocidente, esse velhinho criativo é apenas um nome na tela dos créditos do game da CD Projekt Red. No leste europeu, no entanto, ele figura entre os best-sellers mais elogiados pela crítica. Umarevista russa chegou inclusive a comparar seu mais famoso personagem, Geralt de Rivia, com Pierre Bezhukov, protagonista de Guerra e Paz
2- Eles são uma low fantasy para dar inveja a Game of Thrones
Game of Thrones tomou o mundo de assalto graças a seu enredo complexo de intrigas, cliffhangers e muita violência. Atualmente, a obra de George R.R. Martin é sem dúvida o exemplo mais influente de low fantasy, um estilo mais sóbrio e menos colorido da fantasia medieval popularizada por Dungeons & Dragons. Nela, o mágico é apenas um “tempero” para adoçar uma trama que, para todos os fins, poderia facilmente se passar no mundo real.
Martin não é o único a dominar o estilo. Sapkowski, seu conterrâneo polonês, buscou um efeito semelhante com a série The Witcher. Os livros têm um ritmo elegante, que não perde tempo com diálogo expositivo e descrições intermináveis de lugares exóticos. Seu foco não são monstros, sortilégios e guerreiros com espada, mas os elementos fundamentais que os envolvem: medo, intolerância, incerteza, sofrimento. Para além de seu verniz eslavo fantástico, The Witcher nos conta o que acontece com indivíduos em tempos de fanatismo, guerra e perda.
O estilo de Sapkowski é um pouco diferente do de Martin. Ele é menos cínico (ou talvez só mais contemplativo) em relação à crueldade do mundo. Em suas histórias não há personagens morrendo às dúzias ou execuções chocantes. Sua prosa é seca e direta ao ponto, e seus personagens mantém um forte senso de justiça.
O mundo de The Witcher é sombrio, mas Sapkowski nos introduz a pessoas que se fiam a todo custo à esperança. Geralt, Yennefer, Triss e Ciri são almas boas, cuja ambição, no fundo, é a de encontrar um lugar para chamar de seu.
Nisso, Sapkowski é um contraponto interessante a George R.R. Martin e uma lufada de ar fresco àqueles que já leram e releram Game of Thronese não sabem mais o que fazer da vida. Intrigas da corte, assassinatos políticos, estupros e massacres estão presentes no mundo do Witcher, mas de forma apenas secundária. Geralt e seus companheiros não têm o menor respeito por tronos e jogos de poder. Para eles, guerras são estúpidas, sangrentas e arbitrárias; desculpas usadas por poderosos para matar inocentes por causas inúteis.
Não há fim que justifique os meios, nem “males menores” que perdoem os “males maiores”. O mal é sempre o mal e precisa ser evitado. Como o witcher conseguirá fazer isso num mundo que é maldade incarnada é um mais sensacionais triunfos dos livros.
3- Eles dialogam com mitologias e contos de fada como Neil Gaiman em sua melhor forma
Criar uma história requer talento, mas criar uma história reconhecendo toda uma tradição literária é trabalho de um mestre. Para muitos, esse é o diferencial do britânico Neil Gaiman. Em livros modernos e acessíveis, ele nos leva de volta a milênios de literatura e narrativas orais, da mitologia egípcia às lendas urbanas dos nossos dias, das histórias de Heródoto aos contos de fada.
A prosa de Sapkowski é menos exuberante do que a de Gaiman, e sua intenção está menos em seduzir o leitor com exotismo do que em salpicar o terreno com assombrações e monstros horríveis. Aqueles que leram Entes Queridos sabem do que estou falando. Por mais assutadoras que as Fúrias de Sandman sejam, elas mal se comparam ao terror das Crones de Crookback Bog em The Wild Hunt.
Apesar disso, é impossível não notar as semelhanças. Tal como a obra de Gaiman, o leitor astuto logo notará que os livros de Sapkowski são uma colcha de retalhos de histórias clássicas – em especial, contos de fada.
Como eu disse acima, The Witcher começou não como um romance, mas como uma série de histórias curtas. Embora sua fórmula variasse, elas sempre envolviam algum epísodio sobrenatural, que cedo ou tarde atraía o famoso Geralt de Rivia. Na maioria das vezes, ele age como um árbitro, não um caçador de monstros, como seu título sugere.
Um Fragmento de Gelo é baseado no conto A Rainha do Gelo de Hans Andersen, a inspiração para Frozen. A “rainha”, no entanto, não é Elsa, mas Yennefer de Vengerberg, e o “gelo” é a destruição da Wild Hunt, a tropa de cavaleiros fantasmagóricos que assola o mundo em tempos de guerra.
O Mal Menor reconta a história de Branca de Neve, aqui uma bandida perseguida por um “caçador” que é ninguém menos que o witcher em pessoa. Um Pequeno Sacrifício, por sua vez, é uma das poucas obras modernas que conheço a fazer referência à versão original de A Pequena Sereia. Nela, Ariel se transformará em espuma caso não consiga conquistar o coração de seu príncipe.
Seu tributo à mitologia não é menos impressionante, e aqui não há Neil Gaiman que aguente o tranco. Pois…
4- Você conhecerá uma mitologia completamente nova.
The Witcher pode contar com elfos e anões aqui e acolá, mas seu cenário está longe de ser mais um derivado de O Senhor dos Anéis. Antes, sua principal fonte de inspiração é a mitologia eslava.
A Wild Hunt, a tropa de cavaleiros-fantasma que persegue Geralt? Trata-se de uma história comum ao folclore de vários países do centro e nordeste europeu. Eis uma pintura do século XIX, do norueguês Peter Nicolai Aibo:
E uma gravura da mesma época, dessa vez da Alemanha:
Os monstros não ficam para traz. Leshys (nos games, Leshens) são criaturas da floresta que comandavam animais e sequestravam crianças. Chort é um nome popular para o demônio em países eslavos. E a noonwraith, também chamada de “senhora do meio-dia”, é um popular espírito que rondava os campos no calor infernal, atacando quem encontrasse (para alguns, uma explicação primitiva para os desmaios por insolação).
A noonwraith é uma personagem folclórica tão famosa que até serviu de base para o poema sinfônico “A Bruxa do Meio-Dia” do compositor checho Antonín Dvorák:
Dvorák não parou por aí e também compôs uma canção sobre a rusalka, ninfa d’água que é citada a torto e a direito nos livros de Sapkowski.
Música clássica não é a primeira coisa que vem à mente da maioria ao pensar em fantasia e caçadores de monstros. Mas obras como essa mostram há quanto tempo essas imagens estão presentes no imaginário e como The Witcher é um sopro de criatividade em uma mídia atolada em pastiches de Tolkien.
5- Os games estão lotados de referências aos livros.
Você já se perguntou quem é Esterad Thyssen? Eithné? Francesca Findabair?
Se você jogou The Wild Hunt, deve ter encontrado esses nomes entre as cartas de gwent, o “Magic the Gathering” virtual jogado no game. Eles, e tantos outros, são personagens dos livros de Sapkowski.
Essas pequenas menções não são as únicas. A trilogia da CD Projekt Red pode ser perfeitamente apreciada sozinha, mas a familiaridade com os livros eleva as coisas a um novo patamar. Várias quests e achievements (Lilac and Gooseberries, Something More, Something Ends, Something Begins) têm seus nomes inspirados em contos ou capítulos dos romances de Sapkowski. Outras são do começo ao fim recriações de episódios narrados nos livros. Outras, ainda, são desfechos, conclusões elaboradas para conflitos deixados em aberto pelo material de origem.
Não se trata apenas de uma “adaptação”. Os games de The Witcher são um tributo, uma homenagem a um escritor feito por um grupo de poloneses que, quando jovens, cresceram com seus personagens. Ver tal paixão expressa no jogo é simplesmente sensacional e vai ao encontro do TOC de gamers complecionistas, que precisam esgotar tudo o que um título tem a oferecer para se sentirem satisfeitos.
Eu (e creio que falo pela maioria dos brasileiros) não tive o privilégio de crescer com Geralt de Rivia. Porém, mesmo olhando de fora, apreciando o resultado quase vinte anos depois, não posso deixar de concordar. The Witcher é uma série digna de tal homenagem.
Comentários
Excelente texto e trabalho de pesquisa! Tem sido muito interessante acompanhar esse projeto que você vem desenvolvendo!
Eu li todos os livros, os últimos, após “O Batismo de Fogo”, em inglês, pois ainda não traduziram. Também virei os três jogos. Foi por causa dos jogos que me interessei em ler os livros. Uma coisa importante a se dizer, é que a história dos jogos se passa como uma continuação da saga dos livros, após “A Dama do Lago”. Portanto, os jogos não são apenas baseadas no universo The Witcher, são uma continuidade da história em uma linha temporal.
Quantos livros foram publicados (seja em português ou inglês) ?
Quais os títulos?
Sempre quis algo como um livro até para entender melhor a trama do jogo, já que não joguei o primeiro.
Obrigado 🙂
Segundo a cronologia da história, os livros são:
The Last Wish
Season of Storms
The Sword of Destiny
Blood of Elves
Time of Contempt
Baptism of Fire
The Swallow’s Tower
Lady of the Lake
The Last Wish e The Sword of Destiny são livros de contos. Os outros são romances. Season of Storms foi publicado recentemente na Polônia, então talvez demore para encontrarmos uma tradução. Eu sei que vários foram publicados no Brasil e em Portugal, mas não sei exatamente quantos.
Há também “Something Ends, Something Begins”, uma antologia que contém dois contos do universo de witcher. Até onde eu sei não foi traduzida nem para o português nem para o inglês.
Os cinco primeiro livros foram traduzidos pra português (O Último Desejo, Espada do Destino, Sangue dos Elfos, Tempo do Desprezo e Batismo de Fogo).
O sexto (A Torre da Andorinha) vai ser lançado aqui no segundo semestre, segundo a WMFMartin Fontes, e o Lady of the Lake até o fim do ano ou em 2017.
Season of Storms, como o Vinicius disse, deve demorar.
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Só um comentário informativo. As crônicas de Gelo e Fogo e The Witcher/Wiedźmin não são low fantasy, e sim, high fantasy; uma vez que se passam em um universo diferente do nosso.
O que define se é High ou low fantasy n é isso. The Witcher é High Fantasy pela presença exacerbada de criaturas mitológicas e magia em um mundo q é naturalmente assim. Eu diria q Low Fantasy são as crônicas do Rei Arthur ou Brumas de Avalon (q se enquadram no que vc disse), mas Game of Thrones também pode ser considerado Low Fantasy. Os elementos fantásticos nele são lendas até aparecerem. Mas n existe elfo e magia banalizada como existe em Witcher e Senhor dos Anéis. Tudo em GoT é “real” até que de repente aparece um dragão intruso e uns zumbis de gelo. É a definição da intrusão. Em um mundo q tudo parece normal, repentinamente e intrusivamente aparece um dragão e caminhantes brancos.
Ganhaste um fã!
Poucas vezes encontrei na internet um conteúdo tão completo sobre algo tão complexo. Gostaria de sugerir que leia a Série MAGO de Raymond E. Feist, pois é uma obra que vai agradar muito a leitores de Literatura Fantástica.