Christopher Lee, morto semana passada, foi um daqueles homens que nos fazem perguntar o que tanto fazemos sentados no sofá. Em 93 anos de vida, interpretou mais de 250 papeis, lutou em quase todos os fronts da Segunda Guerra Mundial e aproveitou para escalar o Monte Vesúvio durante uma folga após a batalha de Monte Cassino – uma das mais sangrentas do conflito. Falava inglês, italiano, francês, espanhol, alemão, sueco, russo, grego e mandarim. Era treinado em canto lírico e gravou CDs de Heavy Metal, tornando-se o músico mais velho a entrar na lista de mais ouvidos do Reino Unido. Foi amigo de J.R.R. Tolkien e primo de Ian Fleming, o criador de James Bond.
Cada um tem uma razão especial para lamentar sua morte. Para alguns, foram os vilões a quem deu vida no fim de carreira, Saruman e Conde Dooku. Para as gerações mais antigas, talvez seja sua interpretação do Conde Drácula. De minha parte, cito aquele que, na opinião do grande ator (e desse humilde blogueiro) foi o seu melhor filme: O Homem de Palha de 1973.
Em situações normais, bastaria citar o título para deixar registrada a homenagem. Infelizmente, O Homem de Palha foi um filme tão diferente, tão mutilado por cortes, prejudicado por uma distribuição maluca e pelo seu próprio legado que a recomendação precisa de uma disclaimer. Assim, aqui vão três pontos para tentar encorajar os que até agora nunca se interessaram por esse clássico do terror a vê-lo.
1. Não tem nada a ver com Nicolas Cage
Remakes são uma coisa estranha. Se bem feitos, podem ajudar uma franquia a sobreviver aos anos ou mesmo ressuscitar uma série depois de décadas de esquecimento. Se mal feitos, no entanto, condenam qualquer obra ao deboche. O Homem de Palha, já um fracasso de bilheteria quando foi lançado em 1973, sentiu isso na pele. O remake de 2006, além de ter sido (até então) o maior pé na jaca da carreira de Nicolas Cage e fonte de um dos memes mais batidos da internet, não entendeu nada do material de origem.
O Homem de Palha é um filme sobre um policial, o sargento Howie, que descobre uma comunidade de pagãos no interior da Escócia. Enquanto que o mundo deu voltas e abraçou a modernidade, um líder carismático, Lord Summerisle, mantém aquele pequeno grupo de pessoas no mesmo lugar que estavam na época dos druidas. O terror do filme está em observarmos aquela vila pacata, de rostos sorridentes e costumes esquisitos, e sentirmos que algo está muito errado. Em especial quando entendemos que este povo pretende sacrificar uma pessoa queimando-a dentro de um boneco de palha.
O remake de 2006, para se adequar aos padrões gore do que se passa por “terror” hoje em dia, nos deu uma seita de endiabrados sádicos, cenas de tortura e esquemas maquiavélicos para ludidriar pobres inocentes a seu povoado da perdição. Mas não é nada disso que O Homem de Palha quis dizer. Os aldeões do filme de 1973 não demonstram sadismo, apenas indiferença, uma tranquilidade fria com o modo como “as coisas têm de ser”. Animais morrem, são comidos por outros, procriam e envelhecem. O mundo é regido pelos deuses da natureza, e tudo em seu cotidiado envolve agradá-los. O sacrifício é uma medida de emergência, um pedido de desculpas para o que eles entendem ser fruto da ira divina: o fracasso da colheita, coisa que desde a fundação da vila nunca acontecera. O homem de palha é uma exceção, não o que define a seita.
2. É um musical
Não, você não leu errado. O Homem de Palha é um musical, ou o mais próximo de um que você vai encontrar no cinema britânico de horror de quarenta anos atrás.
Quando o sargento Howie chega à comunidade pagã, o que ele encontra é uma aldeia que vive em função da música. Faz sentido. Como disse no item acima, a intenção do diretor foi criar uma seita plausível, que vive de acordo com suas crenças. E todas as religiões, de uma forma ou de outra, têm música em seus cultos. Por que o paganismo de Summerisle seria diferente?
As canções não aparecem apenas de forma incidental. Pelo contrário, muitas vezes são elas que avançam o enredo. É por meio da música – e de suas letras sugestivas – que o sargento Howie descobre que há algo muito errado com a “educação” das crianças na ilha:
Mais tarde, a filha do taverneiro tenta seduzir o policial. A cena é contada inteiramente pela música:
O próprio Christopher Lee não perde a chance de mostrar sua voz e canta um dueto como o Lord Summerisle:
E, para o clímax, o filme nós traz um acompanhamento quase tão impressionante quanto seu desfecho: Summer is Icumen In, uma canção do século XIII cantada em médio inglês:
Dá para entender porque um cantor como Christopher Lee gostou tanto de participar desse projeto.
3. Segundo o filme, o “paganismo celta” nunca existiu
Isso pode soar absurdo para quem nunca assistiu ao filme, mas é parte de um grande twist em seu enredo. Tão grande, aliás, que colocarei um SPOILER WARNING aqui para aqueles que não quiserem maiores detalhes. (Não que ‘estrague’ o filme de qualquer maneira. Se nada mais, é até interessante assisti-lo do começo com isso em mente).
Em um dado momento, o sargento Howie pede ao Lord Summerisle autorização para exumar a tumba de uma garota que acredita ter sido assassinada na vila. Durante a conversa, ele descobre a história do vilarejo. Originalmente, Summerisle era uma típica ilha escocesa: fria, pobre e rochosa. Em 1865, no entanto, o avô do atual líder, um agrônomo vitoriano de grande renome, percebe que o local tem a combinação de solo e clima ideal para a criação de plantas exóticas. A empreitada tinha o potencial de revolucionar a economia da região, mas havia um problema: como convencer as pessoas de que uma ilha desolada subitamente havia se tornado um paraíso da agricultura? Era necessário contar uma pequena mentira. Os “deuses antigos” haviam retornado e abençoado a ilha com prosperidade.
Óbvio que para o truque funcionar era preciso fazer uma performance convincente. Eis, então, que o agrônomo vitoriano se pôe a copiar os clichés mais famosos de paganismo celta: danças ao redor de fogueiras, ritos de fertilidade, o Green Man e, é claro, o costume gaulês de queimar um homem de palha como oferenda aos deuses. Com o tempo, o que era invencionice virou dogma. Nas palavras de Lord Summerisle, o que seu avô fizera por necessidade ele continuara por devoção.
Como, entretanto, alguém convence uma comunidade inteira a viver de tal maneira? Para o historiador Ronald Hutton, isso não só é explicável como aconteceu de verdade, mas ou menos na mesma época em que o avô de Summerisle, no filme, chega à ilha. Segundo ele, o que hoje se chama de “paganismo celta” foi inventado duzentos anos atrás nos dois países mais obcecados com “a moral e os bons costumes” de sua época: a Alemanha e a Inglaterra vitoriana. Entre a rigidez dos valores cristãos, a modernização e mecanização do trabalho, o rigor das teorias científicas e o crescimento das grandes cidades, parte da população disse basta. Eles queriam uma vida simples, próxima à natureza, aos velhos costumes, à sabedoria popular. Se o mundo “de verdade” não entregava mais isso, precisavam apelar à magia.
Quer dizer que os antigos povos das Ilhas Britânicas não tinham uma religião própria? Claro que tinham. Mas esse paganismo não tem nada a ver com o paganismo “new age” que ganhou popularidade ao longo do século XX. Pelo contrário, este último foi feito sob medida para ser o exato oposto da moral vitoriana. Algo que o desconforto do sargento Howie ilustra muito bem. Se o policial é casto e reserva a virgindade para sua mulher, os habitantes de Summerisle participam de orgias todas as noites. Se Howie se guia pela ciência, as professoras da seita ensinam superstições aos seus alunos. Se ele defende o Estado e a justiça pública, o vilarejo prefere cuidar de seus próprios problemas. Se ele acredita num Deus que nos observa do Paraíso, eles acreditam em deuses naturais, que vivem na Terra.
É irônico que Lord Summerisle levanta o homem de palha justamente porque sua comunidade está indo para as cucuias. A colheita fracassou porque as plantas que cultivavam não eram nativas da Escócia, e sem um agrônomo experiente um dia elas morreriam. Todavia, ao substituir a ciência pelo culto aos deuses, os habitantes perderam o know-how para garantir o próprio sustento. Howie, nos momentos finais do filme, diz com todas as letras: eles podem queimar quantos homens de palha quiserem, pois a colheita vai fracassar de novo e de novo e de novo. Um grupo de camponeses pode até ser enganado. A realidade, não.
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