Aquele que luta contra monstros deve ter cautela para que ele também não se transforme em um monstro.
A frase é de Nietzsche, embora tenha se popularizado (um tiquinho modificada) na voz de Idris Elba no filme Pacific Rim. No que diz respeito aos nossos medos, a afirmação vai direto ao ponto. Monstros apavoram, mas o medo é muito maior quando sabemos que eles têm uma casca de humanidade. Dos lobisomens aos serial killers, do vampirismo à loucura, poucas coisas fazem homens tremerem nas bases mais do que saberem que podem sucumbir à selvageria.
Ainda assim, há uma pequena nuance na frase que a torna ainda mais interessante. E se fosse o ato mesmo de caçar monstros que os faz surgir em primeiro lugar? E se a distância entre caçadores e criaturas for pequena – pequena demais, talvez, para que a maioria das pessoas a perceba? E se eles – tanto monstros quanto herois – não pertencerem ao mundo “normal”, mas fizerem parte de um outro: um jogo de gato e rato mortal em que inocentes estão à mercê de sua violência?
“Herois” que assustam
Games e animes, pela sua própria riqueza visual, têm um carinho especial por coisas de outro mundo. Para alguns, estas mídias chegaram a virar sinônimo do fantástico, ao ponto de estranharam quando um Noir ou Heavy Rain da vida nos apresenta uma história “comum”, sem os fogos de artifício do faz-de-conta. Em muitos trabalhos, este “segundo mundo” é tão mundano quanto calça jeans e pão com manteiga. Não existe “sobrenatural”: o universo é colorido e povoado por seres estranhos, sejam eles os Gorons, Dekus e Zoras de Zelda ou os Totoros do Miyazaki. Adolescentes encontram bichinhos fantásticos e se tornam garotas mágicas. Aventureiros tomam uma poção vermelha e curam todos os ferimentos. Para a audiência, só resta sorrir e aceitar: até desligarem a TV estarão em um planeta com outras regras, e não há nada de errado com ele.
No entanto, outras obras vão por um caminho diferente. Nelas, o mundo é “normal”, ou ao menos deveria ser. Suas personagens são pessoas como nós, com limitações e expectativas como as nossas, vivendo em bairros como os nossos. Se surge alguma coisa fantástica, ela é sempre estranha, inexplicável… aterrorizante. O “sobrenatural”, como o próprio nome já diz, não se encaixa nas expectativas dessas pessoas. Ele faz com que questionem o que sabem, fujam para a segurança e busquem ajuda. Ele é monstruoso, e onde existem monstros existem caçadores para abatê-los.
Acontece que esses mundos são mais complicados. Aqui, não basta girar uma varinha e ganhar um uniforme escolar encantado. Tal como o caçador precisa viver com a caça para entendê-la, o predador de monstros precisa viver com os monstros. Eis a pergunta que não quer se calar: quando eles finalmente lutarem e um sair vitorioso, será que as pessoas normais vão saber reconhecer quem é quem?
Uma barganha infernal
Talvez o exemplo mais surpreendente nos últimos anos tenha sido Puella Magi Madoka Magica. Que a abundância da cor rosa e a semelhança da protagonista com Sakura Kinomoto não dê margem para dúvidas. A série mais se aproxima do sombrio Kara no Kyoukai¸ o qual também teve a trilha assinada pela Yuki Kajiura e músicas de crédito do Kalafina. (Às vezes, não é preciso de mais nada para falar do monstruoso. Escutem isso e me digam que não imaginaram bonecas amaldiçoadas ganhando vida).
Ao contrário do que alguns dizem, Madoka Magica não é exatamente uma subversão do gênero. Todos os elementos clássicos da fórmula da garota mágica estão presentes sem o menor pingo de ironia. Um familiar fofinho com cara de bichinho de pelúcia. Uma menina tímica, porém cheia de amigas. Uma garota que aposta tudo pelo bem de seu amado. Uma heroína que usa o “poder do amor” para salvar o mundo das trevas. A diferença é o sentido nefasto que as coisas ganham. De início, tanto as personagens quanto os espectadores são seduzidos pelo mundinho cor de rosa que esperamos de garotas mágicas. Com o tempo, porém, as protagonistas percebem que venderam sua alma a uma causa horrenda. Conduzidas por um primo do Kero-chan que mais parece uma pelúcia do Mothman, Madoka e suas amigas fazem um pacto com forças obscuras e descobrem, episódio após episódio, o preço exorbitante que terão de pagar.
Geralmente ocupadas em alegrar as manhãs de sábado e vender brinquedo, é difícil ver séries de garota mágica empenhadas em tornar macabro o próprio glamour que o gênero ostenta. Na fantasia medieval, estas releituras são mais comuns, em parte pela popularidade da low fantasy (recentemente, Game of Thrones), em parte pela sua associação popular com o folclore, ele mesmo bastante sombrio.
Isto não significa, obviamente, que não haja grandes destaques. Em Claymore, o mundo é assolado por criaturas chamadas youma. A solução arranjada para os massacres é uma casta de guerreiras cujos corpos foram fundidos aos de monstros na infância. O resultado são seres com mente e fisionomia humanas, mas com a força sobrenatural e os poderes de youma. A “aparência”, entretanto, é apenas aparência. Claymores são monstros com máscaras de gente, e caso usem suas habilidades para além de seu limite elas se transformam em youmas elas próprias.
Com o tempo, a organização que as produz se tornou um negócio extremamente rentável e eficiente. As “voluntárias” a se tornarem guerreiras são sempre do sexo feminino – segundo a lore, a natureza agressiva dos homens faz com que sejam instáveis e mais propensos a se transformar. Eventualmente, descobrimos que órfãs e crianças traumatizadas são as candidatas prediletas. A força das claymores está relacionada com seu psicológico antes da operação, e vítimas de violência tornam-se criaturas mais monstruosas. Quando uma guerreira cede aos seus instintos inumanos, um esquadrão é enviado para abatê-la. Quando um vilarejo sofre o ataque de um monstro, os habitantes contratam a organização mediante um gordo pagamento. Quando a ameaça é eliminada, um funcionário passa para receber o pagamento – e recrutar as meninas cujas familiares foram devoradas pelo youma. Tudo funciona muito bem. Até – o espectador começa a suspeitar- bem demais.
É difícil não ver semelhança com The Witcher, série de Andrzej Sapkowski, adaptada a uma trilogia de games premiadíssima pela CD Projekt Red. Entre cabelos acinzentados, olhos dourados, e o amor por uma filha adotiva, Geralt de Rivia, nosso protagonista, é uma versão polonesa e barbada de Teresa, a guerreira mais poderosa da organização em Claymore. Tal como as caçadoras de youma, witchers são humanos que sofrem horríveis mutações para caçar monstros. A transformação (que fãs de Dragon Age acharão familiar) lhes confere agilidade e força sobre-humanas, sentidos apurados e capacidade de usar magia. Até então, rol normal de habilidades de um herói de RPG. A diferença está no preço.
O que Madoka Magica faz com a garota mágica, The Witcher faz com o aventureiro dos mundos de fantasia. Geralt pode beber as poções de cura que levantam até defunto, mas a contrapartida é uma transformação irreversível. Fórmulas miraculosas, afinal de contas, pertencem ao sobrenatural. Para usá-las, é preciso deixar de ser humano. O efeito colateral? Witchers são estéreis, incapazes de chorar ou de mostrar grandes emoções. Por onde eles andam pessoas cospem, xingam e se afastam. Ao longo da trilogia de games, Geralt se relaciona com o resto do mundo com sua voz rouca e seu senso de humor seco. As pessoas rosnam e o chamam de “bastardo sem coração”. Da cadeira, diante do computador, é impossível não sentir uma pontada de tristeza. Tal como Madoka e suas amigas, ele deu um passo em direção à escuridão e pagou um preço grande. Que ele seja um dos últimos de sua casta fala por si só: poucos têm desejo de seguir em seus passos.
Ainda assim, se há algo diferente na monstruosidade dos witchers é porque eles são apenas o lado mais evidente de uma mudança maior. Na série, o mundo já foi um dia um lugar normal, “calmo” e previsível como a realidade. Um fenômeno estranho, a Conjunção das Esferas, fez com que se transformasse num pesadelo vindo direto de True Detective (ou do livro que o inspirou). Todos os universos precisam de seus faxineiros. Quando a sujeira é a encarnação das perversões humanas, é preciso um profissional com uma espada de prata.
Talvez o mais interessante nessas histórias seja justamente seu esforço em esconder o terror – e nossa surpresa quando finalmente o encontramos. Ao longo do artigo, tive de me policiar várias vezes para não incluir spoilers. Todas essas séries, e as mais de centenas que seguem sua fórmula, têm um twist muito parecido. Como que ele ainda funciona, depois de tanto tempo? Por que nos assustamos tanto ao ver o lado monstruoso das coisas, se assistimos (e jogamos) esse mesmo drama há anos? Talvez seja menos uma questão de medo do que de vontade de sermos contrariados; de olharmos para Madoka, Clare e Geralt e torcermos para que mantenham sua humanidade, por mais difícil que pareça perdê-la. E nos assegurarmos de que nós também temos uma chance de não virarmos monstros, em nossas lutas pessoais contra a monstruosidade da vida.
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