Este post é a segunda parte de uma série. Para ler a primeira parte, clique aqui.

Encontrar a origem do cosplay no ocidente é mais difícil do que parece. Como disse na semana passada, a maioria dos pioneiros não têm noção de que estão criando uma moda que vingará. No Japão não foi diferente. A única certeza que podemos ter é que o hobby não surgiu magicamente com a criação do termo por Nobuyuki Takahashi. Tal como nos Estados Unidos, a prática já contava com uma tradição, espaços de atividade e um grupo de fãs excêntricos e criativos.

Ninguém sabe ao certo quem foi o “primeiro cosplayer” japonês. A informação disponível sobre as convenções no extremo oriente são bem limitadas, e não temos figurões como Forry Ackerman e Morojo que marcaram uma geração com seu fanboyismo. Temos, no entanto, alguém que chega perto.

Mari Kotani

Mari Kotani

Uma das auto-intituladas pioneiras do cosplay do Japão é ninguém menos que a crítica literária e escritora de ficção científica Mari Kotani. Antes de ganhar fama, ela diz ter homenageado personagem do mangá Triton of the Sea de Ozamu Tezuka em um festival de ficção científica em 1978. Uma performance similar em um evento de quadrinhos – o mais próximo que podemos chamar de “convenção nerd” nos padrões atuais – teria vindo apenas em 1983, com uma fantasia da Lum, a querida personagem da Rumiko Takahashi e dos sonhos molhados de uma geração inteira de otakus. collage lum gundamFoi justamente Urusei Yatsura, com toda sua irreverência e sensualidade, que deu a guinada do que mais tarde se chamaria cosplay. Para Daisuke Okabe, junto com Mobile Suit Gundam a série de Rumiko Takahashi foi o empurrão necessário para transformar a prática em um fenômeno.

A Comiket – abreviação de “Comic Market” – foi instrumental nesse começo. A convenção, que existe até os dias de hoje, foi organizada pela primeira vez em 1975, e já em 1979 ficou tão popular que a falta de espaço passou a ser um problema. Não é difícil entender o motivo da febre: os anos 1970 foram uma década de ouro para a produção de mangás e anime. É a ela que devemos não só alguns dos maiores mestres do gênero, mas os mentores e ídolos das gerações seguintes. E é normal que neste ambiente de criatividade sem porteiras as fantasias fossem ganhar destaque.  Séries como Gundam e Usurei Yatsura, se hoje quase sinônimos do Japão contemporâneo, impressionavam pelo seu exotismo, ousadia e facilidade em chamar a atenção.

comiket

Por outro lado, também não é difícil entender por que os problemas começaram a surgir. Os anos 1970 podem ter sido uma época de rebeldia, mas sair às ruas como uma alienígena chifruda com biquíni de oncinha ainda era demais. A popularização das fantasias levou os organizadores a restringir o uso nos espaços das convenções, tanto por pressão da polícia quanto pelo desejo dos fãs de proteger o hobby dos olhares de vizinhos perplexos.

cosplayer na Comiket (anos 1980)

Cosplayers na Comiket (anos 1980)

Ao mesmo tempo, era preciso muita coragem para encarnar personagens como a Lum, e muita, mas muita habilidade manual para construir as fantasias robóticas de Gundam. Para superar esses limites, seria necessário atrair o grande público de entusiasmados sem ousadia ou know-how para encarnar seus personagens favoritos. Se hoje isto é mais ou menos fácil, em uma época sem cosmakers ou Ali Express a situação era outra. A deixa veio com o lançamento de Captain Tsubasa, nosso querido Super Campeões. O anime sobre futebol, além de sucesso de audiência, permitiu que qualquer fã encarnasse seus personagens com uma mera ida à loja de esportes.

 Esse foi o ambiente em que Nobuyuki Takahashi vivia quando cunhou o termo “cosplay”. Ao contrário do que dizem, muito embora o jornalista tenha feito cobertura da Worldcon de 1984 nos EUA e se impressionado com o que viu, sua matéria sobre o tema precedeu a viagem. A palavra cosplay apareceu pela primeira vez num artigo escrito para a revista My Anime em 1983. O próprio Takahashi disponibilizou as imagens para uma entrevista à Kotaku tempos atrás:

 my anime cosplay

Com a difusão, obviamente, vieram os problemas. Os anos 1990 trouxeram a estética bishoujo, coroada por seu maior expoente, Sailor Moon. O hit trouxe um número impressionante de fãs às convenções e popularizou saias e uniformes escolares japoneses no mundo todo. Porém, séries do estilo frequentemente flertavam com o erótico, e não tardou para fãs mais hardcore exagerarem no sex appeal. Alguns incidentes levaram a restrições a certas fantasias, à fotografia e, em alguns eventos, à obrigação do uso do vestiário (proibindo cosplayers de chegarem fantasiados às convenções). Outros incidentes motivaram regras contra armas caseiras e outros props.  Mais uma vez, o episódio de Love Hina no Brasil não foi um raio em céu azul.

De lá para cá, a prática só cresceu e se desenvolveu. O cosplay eventualmente extrapolou o universo do anime e abraçou outras fanbases, incluindo bandas e ídolos pop. O mundo das fantasias virou um mercado de ouro, movimentando quase US$400 milhões por ano. Akihabara, o distrito geek de Tóquio, tornou-se famoso por seus cosplay cafés, restaurantes temáticos em que o staff trabalha a caráter. Embora os mais famosos representem maids (com garçonetes fantasiadas com roupas tradicionais de governantas), há opções para todos. Fãs de mecha – e saudosos das origens do cosplay – podem se divertir no Gundam Café, com cardápio temático, venda de merchandise e garçons que batem continência ao pegar nosso pedido. Infelizmente para nós (mas felizmente para as louças) o staff não trabalha vestindo a mobile suit completa.

Nada mal para um hobby que começou cem anos atrás, com um folião preso por andar nas ruas fantasiado.

LEIA MAIS

Informações não provenientes dos sites citados vieram de OKABE, DAISURE. Cosplay, Lerning and Cultural Practice. In: ITO, MIZUKO. Fandom Unbound: Otaku Culture in a Connected World. (disponível aqui)