Daqui a menos de dois meses chegará até nós a nova edição da Anime Friends. Com ela, vem também o desespero de um exército de cosplayers, amadores ou profissionais, na árdua missão de terminarem seus trajes. O que pouco sabem é que o hobby, popularizado nos últimos anos, é muito mais antigo do que a maioria das pessoas imaginam. Aqueles que criticam a arte de criar fantasias como “passatempo de criança” se surpreenderiam em saber que os primeiros “cosplayers” teriam idade para ser seus avós (ou bisavós). O hobby é mais antigo que os videogames, mais antigo que os computadores (sem os quais não haveria games) e, quiçá, mais antigo que o próprio anime.
Tempos antigos, hábitos familiares
As origens exatas do cosplay são incertas. Afinal, poucos pioneiros têm noção de que suas invenciones se tornarão grande tendências. A palavra em si foi criada pelo jornalista japonês Nobuyuki Takahashi, pouco antes de sua cobertura da Worldcon de 1984. Se isso faz dele o “pai de batismo”, não muda o fato de que observava uma prática já consolidada, com décadas de tradições, inovações e tropeços nas costas.
Talvez o mais antigo registro de uma fantasia nos moldes do que viria a ser o cosplay envolve Mr. Skygack, personagem de uma tira de jornal publicada pela primeira vez em 1907. Ao menos dois bravos precursores da cena nerd prestigiaram o simpático marciano, uma vez em 1908 e outra em 1910. Nesta última, uma pessoa chegou a ser premiada por seu traje (à esquerda), o qual hoje mais parece uma assombração de Silent Hill – ou, tratando-se da época, de Bioshock: Infinite. No entanto, custaria para que bailes de fantasia ganhassem as fanbases.
O primeiro empurrão neste sentido veio de dois fanáticos por ficção científica nos Estados Unidos. Na primeira edição da World Science Fiction Convention, em 1939, Forrest J. Ackerman e Myrtle Douglas desfilaram com trajes baseados no filme Things to Come, de H.G. Well. “Forry” e “Morojo”, como viriam a ser chamados, eram pessoas excêntricas. Se andar pelas ruas vestido de pessoas do espaço não era estranho o suficiente, a dupla complementou a performance conversando em esperanto um com o outro. Foi o suficiente para seduzir novos adeptos. Apenas um ano depois a Worldcon começou a sediar masquerades (“bailes de máscara”) cada vez mais elaborados. Com uma abundância de ficção científica, contos de horror e literatura weird para inspirá-los, uma pequena geração de pré-nerds se pôs a chamar a atenção, inventando as loucuras que fazemos até hoje.
Obviamente, não é possível chamar essas masquerades de “cosplay”. Não só há pouquíssimo em comum entre as “festas do esquisito” de outrora e a comunidade organizada de hoje como não havia nada que indicasse que os primeiros fantasiados sobreveriam aos seus 15 minutos de fama. (A título de curiosidade, a Worldcon até hoje diferencia entre o que chama de “fantasia tradicional” e cosplay propriamente dito). De 1939 para cá muita coisa mudou. O mundo foi devastado pela maior guerra de todos os tempos. Hiroshima e Nagasaki foram obliteradas pela bomba atômica e o resto do mundo tremeu nas bases com medo de qual seria o próximo alvo. O Civil Rights Movement sacudiu as bases da sociedade americana e inspirou reviravoltas em outros países. Um psiquiatra fraudulento acusou os quadrinhos de degeneração, promovendo queimas de gibis, censura e um fantasma de moralismo que persegue a cultura geek até os dias de hoje. Seria possível para os bailinhos de Forry e Morojo encontrar espaço nesse “admirável mundo novo”, sério e controverso? De alguma forma, foi.
A rebeldia e o início da nerdice
Em 1970, os participantes da Worldcon testemunharam uma performance inédita: uma pessoa entrou na masquerade completamente nua. Os tempos mudavam violentamente, e o mundo estranho da ficção científica caía aos revoltados como uma luva. Na década dos efeitos especiais e das grandes space operas, da irreverência, juventude e da rebeldia com as coisas de carne e osso, encarnar personagens imaginárias ganhou um apelo nunca visto até então. Como tudo em sua geração, os trajes não conheciam tabu, e não era incomum encontrar fantasias esquisitas, chocantes e reveladoras.
Nos dias de hoje, em que a cultura geek foi associada à informática, à virada do milênio, e aos “nerds de porão”, pode parecer estranho que o mundo do cosplay tenha pontos em comum com a onda da contracultura. Alguns consideram George Lucas como o pai do “cinema blockbuster”, encerrando a onda de ficção científica “política” dos anos 1950 e 1960. Em seu filme Argo Ben Affleck enfatiza o julgamento, contrastando a hype sobre o lançamento de sua space opera fajuta com os horrores da crise dos reféns no Irã. Porém, com o diz o ditado, as aparências às vezes enganam. Os antepassados do cosplay eram, à sua maneira, incrivelmente subversivos. O fotógrafo Ron Miller (autor das imagens acima) lembra de um fã intrépido que participou de uma convenção com o corpo inteiro coberto de manteiga de amendoim. A moda de fantasias “ousadas” ou deliberadamente pornográficas (cuidado, NSFW) chegou a tal ponto que regras tiveram de ser feitas. “No costume is no costume” tornou-se lei em eventos, muito embora, como em toda lei, não havia falta de corajosos para burlá-la. O infame episódio dos “cosplays” de Love Hina em um evento brasileiro anos atrás pode ter sido muita coisa, mas não foi um raio num céu azul.
Novidades do extremo oriente
Foi nos anos 1970, também, que as masquerades saíram do mundo da ficção científica para adentrar o do anime. Então uma novidade underground no ocidente, a japanimation, como era chamada nos EUA, não tardou a ganhar fãs. Como todo “marco zero”, é difícil saber que foi o primeiro a criar a moda, mas há poucas dúvidas de que Karen Schnaubelt acompanhou a nova tendência desde o princípio. A cosplayer (ou proto-cosplayer, se quisermos ser puristas), interpretou personagens das séries Capitão Harlock e a Nave Arcádia e Star Blazers, adaptação americana do hit Space Battleship Yamato. A tendência explodiu na San Diego Comic Con de 1980, surfando na onda da popularidade que recebera o anime e mangá em praias americanas.
Claro, levaria ainda muito tempo até que essas convenções começassem a lembrar os eventos de hoje. Para cosplayers acostumados com o hobby organizado e regulamentado de nossos dias, a cena de fantasia da geração de nossos pais pareceria uma grande bagunça. Foram os anos 1980 que mais contribuíram para mudar as regras do jogo. Em 1981, a World Science Fiction Convention em Denver foi a primeira a dividir a competição nas masquerades em níveis hierárquicos. Em 1983, um grupo de pessoas, incluíndo a pioneira das fantasias de anime, Karen Schnaubelt, realizou a primeira Costume Con, convenção dedicada especialmente a fantasias. Em 1985, na terceira edição do evento, foi fundada a International Costumer’s Guild, uma organização dedicada a promover as performances de fantasia em escala global.
Foi esse o hobby, nessa época de popularidade, expansão e entusiasmo, que Nobuyuki Takahashi encontrou quando cunhou o termo “cosplay” para sua matéria na My Anime. O que acontecia, nesse ínterim, na terra do sol nascente? E o que mudou após a reportagem de Takahashi? Esse será o tema da Parte 2 dessa retrospectiva.
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