Esse mês traz um sopro de alívio a todos que sofrem da abstinência de grandes RPGs. The Witcher 3: The Wild Hunt, sequência de uma das mais inesperadas franquias dos últimos anos, chegará às prateleiras. Quem pensava que um game da Polônia viesse um dia a fazer sucesso no grande circuito que venha pegar meu dinheiro da aposta. De minha parte, qualquer esperança que eu pudesse ter a respeito foi varrida pela tímida recepção do alemão Gothic na geração retrasada. Nota mental de que a Europa não-anglófona e não-Ubisoft, se não uma cornucópia da fartura em termos de lançamentos, tem muito talento a entregar.
Céticos ou apaixonados, fãs da série que perderam a entrevista de Jonas Mattsson, designer da CD Projekt Red, em 2013 vão se interessar em ler seus comentários. Sua declaração de que The Wild Hunt, fiel à nova linha de RPGs pós-Skyrim, será uma sandbox talvez seja o que mais atraia a atenção dos gamers. Contudo, interessante também são as referências sobre as quais ele diz ter trabalhado: Game of Thrones, Robin Hood e o clássico épico de Mel Gibson, Coração Valente.
Afora o fato de ser um filme mais velho que boa parte dos que jogam hoje em dia, não há nada muito estranho em tomar o blockbuster sobre William Wallace como inspiração. Entre batalhas campais, trilha cinematográfica e figurinos de época (sem contar o estrondoso sucesso nas bilheterias) temos a receita de uma “fantasia medieval de sucesso”. Mais do que outros títulos que miram algum tipo de singularidade, The Witcher apresenta uma identidade visual bastante ancorada em referências históricas, com toda a flexibilidade que a low fantasy lhe permite. A questão é que a CD Projekt Red não está sozinha em seus hábitos cinematográficos. Muito pelo contrário.
1995 mode
Chivalry: Medieval Warfare, originalmente um mod de Half Life 2 chamado Age of Chivalry, é uma paródia de Call of Duty que leva o tiroteiro descerebrado para a era das bestas e alabardas. O hack & slash (ou first person slasher, como seus criadores preferem chamá-lo) tem pouco em comum com o game polonês além dos jatos de sangue e da atmosfera medieval. Ao contrário de The Witcher, no entanto, ele se propõe a ser uma obra “histórica”, e promete “capturar a experiência de realmente estar em um campo de batalha medieval”. O estranho são suas referências: Gladiador, 300 e ele mesmo: Coração Valente.
Ora, dirá o leitor, são dois jogos blockbusters, para fãs de sangue, mágica e adrenalina. Que importam as palavras que utilizem em seu marketing, ou a fonte de sua inspiração? Nenhum dos dois está preocupado em dar uma aula a seus jogadores. Justo. Kingdom Come: Deliverance, no entanto, está. O game, em desenvolvimento pela checa Warhorse, se propõe a ser um dos jogos “medievais” mais “realistas” já feitos. Se Chivalry tem os olhos em CoD: Modern Warfare, Kingdom Come vê sua musa em Arma, a detalhada (e dificílima) série de tiro, na qual muitos de seus desenvolvedores trabalharam. A proposta é fazer um game fidedigno em todos os sentidos: na física, na ambientação, vestuário, geografia e mesmo narrativa. Uma proposta para lá de ousada, e que nos faz imaginar com que tipo de referências estão trabalhando. Nas palavras de seu diretor, Daniel Vávra: “Será Coração Valente: o jogo!”
Duas vezes podem ser coincidência; três, não. Talvez sejam os “castelos majestáticos, cavaleiros em armadura, batalhas em campo aberto e intriga política” (Pelo menos, é o que diz o Kickstarter de Vávra). Talvez sejam as dez indicações ao Oscar ou o carisma de seu ator principal. Talvez seja o efeito mnemônico de reprises intermináveis na Sessão da Tarde e seus equivalentes mundo afora. O fato é que o épico de Mel Gibson passa inegavelmente uma impressão de autoridade.
O cético poderia criticar a escolha de fonte. De fato, há pouco para recomendar Coração Valente como um modelo de fidelidade. Os kilts e claymores que esbanja a rodo levariam ainda duzentos anos para serem criados. O jus primae noctis, que faz com que a esposa de William Wallace seja raptada e morta e o motiva ao levante, não existia na lei inglesa. Muitas das pessoas nas quais suas personagens foram baseadas sequer viveram na mesma época. Reúna meia dúzia de historiadores, deem-lhes um bloquinho e o filme para assistir e você terá uma lista homérica de outras incoerências até os créditos finais.
Novas obras para novos tempos
O ponto, como eu já disse antes, é que nem só de detalhes se faz o autêntico. Saber criar uma atmosfera envolvente muitas vezes faz toda a diferença. E, quando se trata de atmosfera, não estamos mais falando de argumentos, e sim de emoções e de como influenciá-las. De Os Sopranos a Demolidor, há uma tendência na TV de explorar personagens imperfeitos em histórias cínicas ou brutais. No que diz respeito ao relativamente pequeno (mas querido) nicho dos games medievalistas, parece acontecer algo similar. Há certo ranço com os clichés coloridos introduzidos por O Senhor dos Anéis e reproduzidos por três ou quatro gerações de fãs de RPG. Existe um público incrédulo demais para heróis adolescentes com capas coloridas, perdido demais para as visões de moralidade, ordem e natureza da obra de Tolkien e incomodado demais com o desgaste de sua lore favorita. Daí que desenvolvedores da Obsidian apelam ao Kickstarter para financiar seu jogo sobre bebês natimortos e designers da Bioware descrevem Dragon Age como uma alegoria sobre a época da Inquisição. Coração Valente pode não ser muitas coisas, mas uma delas ele sem dúvida é: sério sem parecer ridículo.
A tendência não é nova, mesmo no mundo dos games. De certa forma, ela é até previsível. Jogos de tiro deram suas caras no mercado com ninguém menos que Adolf Hitler em um exoesqueleto robótico e braços de metralhadora. Vinte anos depois, temos uma história sobre a Rebelião dos Boxers, o Massacre de Wounded Knee e um criminoso de guerra vertido em capanga enlouquecido com o sangue em suas mãos. Tal como os fãs de Breaking Bad, Mad Men e True Detective, há um grupo de gamers (e desenvolvedores) que começou a exigir mais do seu entretenimento.
Pode ser que Daniel Vávra seja simplesmente ingênuo e veja em Coração Valente um exemplo de fidelidade histórica. No entanto, é possível também que a Warhorse, tal como a CD Projekt Red, esteja apenas mirando os corações de um certo típico de público que conhece muito bem. É sempre bom lembrar, afinal, que antes de ganhar o mundo como um game The Witcher era uma franquia literária, não muito longe de um Game of Thrones polaco. O Blockbuster de Mel Gibson pode estar distante, mas não esqueçamos que o tempo passa. Há vinte anos, ver um vilão ter o rosto esmagado por uma maça levava a plateia ao delírio como qualquer casamento vermelho hoje em dia.
Comentários
Pingback: O que The Witcher 3 nos Ensina Sobre Afeto | finisgeekis
Pingback: 5 motivos para você ler os livros de ‘The Witcher’ | finisgeekis
Pingback: De onde vieram os anti-heróis dos quadrinhos? – finisgeekis