É uma grata surpresa ver, em uma nova temporada de anime, títulos que buscam impressionar sem abandonar fórmulas de sucesso. O maior destaque nas últimas semanas tem sido o doce (e irreverente) Plastic Memories.
Com a verve melodramática que anda fazendo sucesso hoje em dia, a animação acompanha a história de funcionários de uma divisão da SAI Corp., companhia que vende robôs humanoides sapientes chamados giftias. Iguais a serem humanos em quase tudo, eles têm, contudo, uma diferença crucial: seus circuitos só aguentam nove anos de atividade. Assistir ao sistema se degradando não é para muitos. Em função disso, a SAI Corp. fornece serviços “funerários”, recolhendo os giftias que se aproximam de seu fim.
Serviço de passagem
Eis aqui um argumento que parece uma versão cibernética de A Partida. Ao contrário dos okuribito do filme de Yojiro Takita, no entanto, os “despachantes” deste mundo futurista trabalham sempre em dupla, um humano e um giftia. Tsukasa, um novato desastrado, e Isla, uma androide no fim de sua vida útil, são nossos protagonistas. Tsukasa busca se aproximar da companheira, e parece evidente que seu relacionamento se tornará mais profundo. Dado que Isla tem poucas semanas de vida, parece também inevitável que o vínculo terminará em tragédia. O leitor aguçado poderá ver paralelos com os Persocoms de Chobits, ou mesmo com a angústia dos replicantes de Blade Runner, mas estejam avisados que as aparências enganam. Pelo que tem mostrado até agora, a série é pouco ambiciosa. O elenco, uma pequena coleção dos clichés mais queridos do anime, estão dispostos a tirar risos tanto quanto lágrimas. Isla, uma kuudere que poderia se passar por irmã da Tenshi, de Angel Beats, tem em comum com a Chi de Chobits apenas os circuitos. Fechada e deslocada do mundo, dá uma presença muito mais pesada à série, mesmo em seus momentos de escape cômico.
Logo de cara fica evidente que não está na ficção científica a chave da série. Marcada por um desdém por technobabble digno de Ah! My Goddess, a lore de Plastic Memories só está presente para dar volume. A dupla de “despachantes”, por exemplo, é chamada de spotter e marksman, uma referência sem razão aparente às unidades de sniper das forças armadas. Pelo contrário, a obra parece muito mais interessada nas facetas humanas da perda do que na sua lógica. O fundamental em relação aos giftias não é o fato de serem máquinas, propriamente ditas, e sim artifícios, criações humanas. Frutos, enfim, das nossas mãos e da nossa mente. Conforme nos familiarizamos com a rotina de Isla e Tsukasa, há uma questão que jamais sair do ar: é possível compensarmos nossas perdas criando algo para ocupar seu lugar?
A insustentável leveza do ser
A pergunta não é nova, nem rara. Pelo contrário, parece nos acompanhar com maior frequência dia após dia. Na nossa época, muito se fala de construções humanas. Da língua que falamos ao país em que vivemos, das causas do amor ao nosso próprio corpo, das nossas preferências estéticas à doçura do doce e ao amargor do amargo, tudo é uma grande invenção vendida por mentes prodigiosas. A ideia de que vivemos em uma construção do nosso próprio gênio, e que a natureza não existe ou não importa é extremamente sedutora. Afinal, se a realidade é criada, é necessário que os seres humanos sejam capazes de criar. Inventar o mundo: que grande triunfo à espécie que sempre desafiou a natureza! Para os que antes se contentavam em se proteger das intempéries em cavernas e dar grandes saltos na superfície da lua, nossa geração vive numa utopia sem precedentes.
Acontece que nem tudo são flores. E viver sozinho em um playground se torna solitário mais cedo ou mais tarde. Podemos nos divertir o quanto quisermos com nossos brinquedos de faz de conta, desde que não pensemos muito a respeito. Pois se o único sentido da vida é o sentido que damos a ela, é porque a vida não tem sentido algum. Se a única realidade é a que decretamos ser real, vivemos no escuro, sem conhecer o que nos cerca. Se os únicos amigos que temos são os da nossa imaginação, é porque estamos na verdade desesperadamente sós. Como uma pensadora controversa dizia muito tempo atrás, podemos ignorar o mundo real, mas o mundo real não nos ignora.
Há uma razão pela qual o anime é visto com desconfiança em seu país de origem. Existe a impressão de que o meio faz com que as pessoas troquem o real pelo virtual, os ganhos na vida pelo prazer emulado, os laços com humanos de verdade pelo afeto de desenhos de olhos esbugalhados. Quem empurra quem é difícil dizer. É bem capaz que o anime só preencha um vazio que nossos tempos tenham criado: uma solidão extrema e uma falta de propósito em escala global. Nada muda o fato de que nos voltamos para nossos “giftias”, sejam eles quais forem, para nos acreditarmos mais completos. A armadilha, como Plastic Memories nos lembra, é que giftias um dia morrerão. E o buraco que esperávamos tampar vai reaparecer quando menos esperamos.
No primeiro episódio, Isla e Tsukasa precisam aposentar uma jovem androide da casa de uma idosa. A peça é uma criança, uma ilusão criada pela senhora para esconder o fato de que está sozinha, próxima do seu fim, e que o mundo à sua volta não lhe cede mais nenhum afeto. Em Chobits, a indústria dos Persocoms é construída por almas solitárias. Chitose Hibiya, sua inventora, viu nos androides uma forma de ter os filhos que nunca pôde conceber. Minoru Kokubunji, prodígio da robótica, tenta a todo custo recriar sua irmã falecida. Hiroyasu Ueda se casa com sua persocom e sofre um trauma quando ela invariavelmente fica obsoleta e para de funcionar. Nas entrelinhas, Uma cidade sem Ninguém, o livro ilustrado lido por Chi ao longo da história, serve de lembrança silenciosa dos corações partidos e olhos embargados.
Se nessas séries o laço é visto com bons olhos – uma “cura”, conquanto inadequada, para a grande solidão de nossa década – isso nem sempre é o caso. Em Paranoia Agent, Satoshi Kon nos apresenta um otaku que de tão viciado em anime é incapaz de tirar prazer de pessoas reais. Para satisfazer suas necessidades mais básicas, contrata prostitutas e mantém bonecas nas mãos durante o coito, imaginado as estar possuindo. O amor surpreendentemente casto de Chi e Hideki, por este lado, não parece mais tão bittersweet!
Curiosamente, é justo sobre androides que fala o ‘canto do cisne’ de Kon. The Dreaming Machine se propunha a ser um “road movie para robôs”, abordando outro tipo de solidão: a das criaturas pelos seus criadores. O elenco não contaria com uma única pessoa: é o sentimento dos “objetos”, dos frutos da engenhosidade humana, que nos comoveria. O longa cumpre a dupla façanha de ser a primeira obra de Kon com roteiro original assinado pelo próprio diretor e a primeira para um público infanto-juvenil. Infelizmente, Kon morreu de câncer em 2010, e seu filme foi arquivado por falta de verbas. Salvo o crowdfunding de alguma alma bondosa, é possível que jamais assistamos à sua última palavra sobre o assunto.
Uma grande pena. Em nossa época de criaturas, nada é mais bem vindo do que um grande criador.
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