Exclamações de “kawaii!!” não são as únicas emoções de que otakus se vangloriam. Para o observador de fora, pode parecer estranho que uma mídia povoada por cabelos coloridos, espadas gigantescas, robôs de combate e acrobacias sobre-humanas possa despertar sentimentos mais profundos. À exceção dos longa metragens autorais, nosso anime televisivo de cada dia nos oferece, na melhor das hipóteses, uma overdose sensorial; na pior, um passatempo enérgico. Quando até mesmo os animadores mostram desdém pelo seu próprio meio é porque há alguma coisa errada.
Ou, talvez, seja porque estamos olhando para o lugar errado.
É notável, nesse caso, a popularidade do melodrama no anime. Não a tragédia sóbria da dita “alta” cultura, mas – o que é, de certa forma, ainda mais surpreendente – o drama pastelão, de reações exageradas e estereotipadas. A trama que se leva a sério demais, e tão bem cumpre a tarefa que parece se tornar outra coisa (um comercial de si mesma, talvez). Ao lado de artistas marciais, garotas mágicas e namoradas perfeitas, os otakus mostram um ponto fraco para lágrimas fáceis, abundantes e sinceras.
O recente Shigatsu wa Kimi no Uso nos traz a história de um jovem pianista sujeito à violência doméstica durante a infância e ao trauma de amigos sucumbindo a doenças terminais. Ano Hi Mita Hana no Namae o Bokutachi wa Mada Shiranai, ou Ano Hana, para os entendidos, acompanha um grupo de adolescentes disfuncionais cuja infância foi arruinada pela morte de uma colega. Angel Beats, disfarçado de filho ilegítimo de Haruhi Suzumiya e K-ON, retrata um purgatório para jovens que morreram antes de desfrutarem a vida. Já do futurista A Voice of a Distant Star ao mundano The Garden of Words, Makoto Shinkai contou histórias – para alguns, a mesma história várias vezes – da solidão inescapável do mundo contemporâneo.
Nada disso é novo. O nicho já foi fincado há muitos anos com filmes live-action como Love Letter e Crying out Love in the Center of the World – e suas respectivas fontes e adaptações. No anime, o gênero bebe de sucessos como Honey & Clover e as visual novels da Key (Kanon, Air, Clannad). Obras, é claro, que empalidecem em tristeza diante da rainha absoluta do melodrama, a incontáveis vezes adaptada – e sugestivamente intitulada – Um Litro de Lágrimas.
Essas obras são tão universais em sua proposta e tão óbvias na entrega que fica até pedante buscar um padrão. Num juízo um tanto simplista, mas nem por isso falso, parece haver uma demanda japonesa por histórias melosas envolvendo entes queridos, passados saudosos e, por algum motivo, os anos 1980.
Para alguns, isso não é uma coincidência. Há quem veja no melodrama um consolo ao Japão contemporâneo, à sensação de que os melhores dias já se passaram e a vida fica mais e mais difícil. Entre crises econômicas, desilusão com o emprego e angústias para com o futuro, resta o palpite de que o mundo era melhor quando as pessoas não tinham celular e salvavam arquivos em disquete. O passado próximo dos anos 1980 seria aqui o limiar entre os dois estágios, o último momento de calmaria antes das complicações. E da nostalgia pelos anos de ouro passa-se à nostalgia pela juventude, pelos entes amados perdidos e, finalmente, pela nostalgia por si só. Chega-se. enfim, à sensação de vazio espiritual dos filmes de Shinkai, um oco tão profundo que faz mesmo do contato humano um alívio passageiro.
A explicação é plausível, mas não responde por que essas séries se tornaram tão populares no Ocidente. Nem como a comunidade otaku internacional, do alto de sua juventude, irreverência e descaso com as tradições, veio a vibrar com representações tão cafonas de afeto. Ou há algo mais no melodrama, ou há algo em comum entre os millenials ocidentais e a geração X japonesa. Provavelmente ambos.
O segundo ponto é mais evidente. Por mais que reclamem do conservadorismo das gerações passadas, os jovens ocidentais são incrivelmente aferroados à sua memória. O culto aos anos 1990s como um paraíso terreno da infância e cultura pop é arraigado no coração dos nerds. Games e animes de dez anos atrás ganham o status de clássicos não por serem influentes (ou minimamente decentes), mas por carregarem uma espécie de sabedoria ancestral. É lugar comum rir de velhos que comparam tudo ao “seu tempo”. Quando vemos jovens de 20 anos fazendo o mesmo, é sinal de que é hora de pararmos para refletir.
Tempos atrás, diante da crítica de que o último “jogo” de “arte” do momento não passava de um simulador de caminhada, um comentarista de games chegou a afirmar que só quem viveu os anos 1990 é capaz de entendê-lo. Houve um tempo em que a arte nos trazia experiências novas e nos levava a lugares desconhecidos. Hoje em dia, “cultura” aparentemente virou privilégio da casta iluminada que jogava Pokémon no gameboy e ouvia Walkman andando nas ruas de San Francisco. Nem todos os países passaram por momentos econômicos parecidos com os do Japão. Para alguns (como o Brasil), a era das vacas gordas só viria vinte anos depois. Mas é óbvio, para a geração do before it was cool, o apelo do drama nostálgico japonês. Podemos ter chegado a este ponto de lugares distintos, mas falamos a mesma língua.
Há ainda, eu acrescentaria, uma razão menos cínica. A despeito da similaridade com os “simuladores de caminhada” da indústria de games contemporânea, há nos animes de melodrama pontos de apelo universal. Para além dos finais emotivos e da trilha sonora pesada, eles carregam momentos de sutiliza.
O primeiro dos três curtas de 5 Centimeters per Second é geralmente o mais comentado. De fato, é difícil superar a jornada de um casal de adolescentes ao atravessar o país durante uma nevasca para se encontrarem uma última vez. Mas é o último (e menos badalado) dos curtas que fecha a história com chave de ouro. Os dois jovens, agora crescidos, perderam contato e seguiram com suas vidas. Ao longo de cinco minutos nós os vemos coabitando os mesmos lugares, fazendo compras nas mesmas lojas e atravessando os mesmos cruzamentos. A cidade grande é tão indiferente, e a vida contemporânea tão individualista, que nada disso é suficiente para manter um vínculo. Vivemos na era das conexões, em que esquecer – ou ser esquecido pelo outro – é suficiente para nos distanciarmos para sempre.
Em Ano Hana, um grupo de jovens tenta reatar as amizades após serem assombrados pelo fantasma de uma amiga morta. Mais interessante que a catarse, no entanto, é observar como cada um deles mudou com a experiência. Uma garota em particular, a eterna nerd do grupo, cresce e se transforma em uma das jovens oferecidas que sempre repudiou. Ela veste uma máscara sedutora sem tirar qualquer prazer do jogo da conquista. Na escola, ganha fama de vadia, e circulam boatos de que faz programa a adultos. Mesmo assim, a atitude é preferível à alternativa: ao se esconder atrás de seu corpo, desvia a atenção dos problemas da mente e da necessidade de superá-los.
Em uma mídia tão preocupada em instigar emoções, é curioso que os momentos menos apaixonados sejam justamente os mais humanos. Por mais pasteurizadas que as séries possam se mostrar, esses pequenos detalhes não são genéricos. Antes, são específicos até demais, e é daí que vem a sua força. Todos temos contradições e somos ainda mais rápidos em apontá-las nos outros. Todos, cada um à sua maneira, tentamos enganar os outros enganando a nós mesmos e apagamos pessoas da vida como se fossem nomes em uma lista de contatos. Nossa geração pode ser cínica e acelerada, mas nem por isso descobriu a pedra filosofal das suas angústias mais básicas. Tolstói certa vez disse que todas as famílias felizes são iguais, mas cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira. O mesmo vale, penso eu, para qualquer cenário em que seres humanos cruzem olhares. Enquanto isso for verdade estaremos nos sofás, lenço em mãos e olhos embargados, a torcer pela felicidade de nossos desenhos.
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