Eu acho que o meio está rapidamente se movendo na direção de se tornar mais cinemático do que era – o que é bom e ruim, eu creio. É bom na medida em que agora podemos mostrar tanto quanto contamos. E é ruim porque nós subitamente precisamos mostrar, e menos fica a cargo da imaginação… algo com que, de várias maneiras, nós jamais poderemos competir.
A frase acima é de David Gaider, escritor da Bioware, em entrevista que deu quando do lançamento de Dragon Age II. Sua opinião é ao mesmo tempo pé-no-chão e profética, e só mostra quanto Gaider está antenado na metamorfose pela qual os CRPGs passam. Dragon Age II foi criticado por simplicar demais as mecânicas do gênero, por emprestar demais dos games de ação e por – supostamente – ter se colocado como um “primo pobre” (e fantástico) do bem sucedido RPG/TPS Mass Effect. O lançamento causou alguma comoção – com direito até a uma “mea culpa” do diretor criativo Mike Laidlaw – mas ela pareceu superficial, se não mesmo derrotada. Entre os gráficos superiores, novos sistemas e orçamentos dignos de Hollywood, havia uma impressão sutil de que o novo, goste a gente ou não, chegou para ficar. Adicione a isso uma nova geração de gamers que conheceu pouco a era de ouro dos CRPGs e menos ainda os jogos de tabuleiro que a inspiraram e a situação piora ainda mais. Não há mais lugar para os RPGs de ontem, e quem pensa diferente pode fazer as malas e partir.
Um recomeço inesperado
As malas eles fizeram, só que pouquíssimos (além de David Gaider) podiam imaginar quão longe eles chegariam. De 2011 até hoje há um Kickstarter de distância, e com a popularização do crowdfunding uma série de desenvolvedores não muito amado pelos investidores tradicionais arregaçaram as mangas e se puseram a desbravar fronteiras. O resultado? Em 2014, Divinity: Original Sin, homenagem saudosa à “era de ouro”, arrecadou 1 milhão de dólares dos fãs; Wasteland 2, sequel de um título obscuro de 1987, juntou quase 3. Pillars of Eternity, lançado esse mês, ultrapassou os 4 milhões, e Torment: Tides of Numenera, sucessor do clássico cult (e fracasso de vendas) Planescape: Torment está a caminho dos 5. Um gamer veterano que retomasse o hobby hoje após vinte anos de hiato se sentiria em casa: os velhos CRPGs isométricos são o novo preto.
As razões para isso talvez não sejam tão misteriosas. Já falei aqui antes do papel do “faz de conta” e da dificuldade dos games em reproduzi-lo. Se um roguelike ou uma narrativa emergente, como um RPG de mesa, trazem isso pelo acaso e pela imprevisibilidade, os CRPGs de eras passadas traziam pelo que lhes faltava. Não havia pixels suficientes para representar uma vestimenta, então estávamos livres para imaginá-la da forma que quiséssemos. Não havia uma voz oficial para o protagonista assinada por uma celebridade, então escutávamos a nossa. Não havia, muitas vezes, o aprisionamento de nossas personagens à uma lore rígida, então podíamos criar personagens do absoluto zero, muitas vezes reutilizando heróis de RPG de mesa ou outros videogames. Não havia a obrigação (ou o espaço em disco) para se contratar muitos dubladores, e assim nossos diálogos eram imensos, irrestritos e versáteis em opções.
O dilema lembra as disputas entre aqueles que consideram jogos um “playground” e os que pensam neles como narrativas, sucessores de filmes e livros. É uma discussão quase tão velha quanto Baldur’s Gate, e que levou desenvolvedores e pesquisadores a coçar muito a cabeça. O curioso dos RPGs é que, mais do que qualquer outro gênero, parecem estar no meio do tiroteio: seus “diferenciais” desde que mundo é mundo foram a liberdade de escolha e a qualidade narrativa, e há fãs de ambos os lados pronto para criticá-los quando pendem para um lado mais do que para outro. De onde vem a questão: e quando liberdade e narrativa forem auto excludentes? E se os longos textos e diálogos intermináveis – sem contar a preocupação em criar um enredo coerente – tirarem do jogador a sensação de autonomia? E se o emaranhado de atributos, cálculos e acrônimos incompreensíveis (porém indispensáveis) afugentarem um jogador que de outra forma teria amado mergulhar na história?
Apesar de meu apreço pela “velha guarda”, sempre me incomodei com que direcionava essas limitações como críticas aos novos CRPGs do mundo AAA. Afinal de contas, trata-se de um estilo de jogo que veio a outro propósito, e tem um currículo próprio de inovações bem sucedidas. Quem nunca se impressionou com uma cinemática bem feita ou com a voz da Jennifer Hale que atire a primeira pedra. Entretanto, o “retorno” dos CRPGs isométricos conta uma história que não pode ser negada: há uma experiência única no gênero que se perdeu com o passar do tempo. E alguns gamers estão dispostos a voltar para buscá-las.
O retorno do filho pródigo
Aqueles que jogam desde os anos 1980 e 1990, todavia, sabem que a coisa não é tão simples. Há motivos para o gênero ter mudado em primeiro lugar, e muito do que era feito antigamente só era feito porque não se conheciam alternativas viáveis. O gamer contemporâneo que explore um título de vinte anos sofrerá o mesmo choque de um estrangeiro perdido em uma feira livre. Afinal, estamos falando de uma época anterior aos quest markers, auto-travel, autosave, regeneração automática; a era das mortes permanentes, diários de campanha pouco claros, resolução de tela sofrível e sistemas de combate desesperadores. A época em que era possível “perder” o jogo simplesmente por deixar de ter um item específico em um lugar específico em um momento específico. Lembro-me com amargura de ter abandonado Planescape: Torment depois da terceira vez em que tive de recomeçar o jogo do zero por ter jogador fora quest items sem saber que eram importantes.
Seria a nostalgia suficiente para trazer esse estilo de volta à moda, ou seria preciso reinventá-lo? É possível reinventar esse tipo de jogo sem perder sua essência?
A despeito de seu sucesso, a nova leva de RPGs isométricos deixa algumas dúvidas. Divinity: Original Sin modernizou seu visual, sistema de combate, criação e customização de personagens, mas sofre de diálogos prolixos e um sistema de crafting para dar dor de cabeça em qualquer um. Wasteland 2 tem batalhas estupidamente difíceis e uma lista de perícias gigantesca, que exige um planejamento minucioso na hora de criar sua equipe. Qual foi minha surpresa, portanto, ao ver que os criadores de Pillars of Eternity resolveram nadar contra a corrente.
Segundo o diretor de projeto, Josh Sawyer, o objetivo do sistema de regras é impedir a criação de personagens inviáveis. Todos que já tiveram experiências com CRPGs sabem que montar cuidadosamente um protagonista é uma das tarefas mais importantes no gênero – e fonte de boa parte da diversão. Afinal, nada dá mais prazer do que ver uma personagem evitando um combate graças ao bom uso de perícias, ou derrotando um inimigo superior por meio da sinergia entre party members.
A proposta é estranha, mas assusta menos quando vista em prática. Para os revoltados de plantão: não se alarmem. Há habilidades melhores que outras e o jogo ainda recompensa aqueles que dominam o sistema. Ademais, a dificuldade de alguns encontros vai fazer bom uso dessas recompensas. A “mágica” está em três fatores: níveis de dificuldade minuciosamente customizáveis, diversidade de builds para cada classe e a possibilidade de criar party members, “NPCs do jogador”, ao longo da aventura. Sozinhas, cada uma das medidas não impressionaria muito, mas juntas formam um equilíbrio interessante. Até que ponto vai ser suficiente para levar o gosto por CRPGs isométricos a uma nova geração é ponto para debate. De qualquer maneira, eles não estão sozinhos na luta. Os novos CRPGs do universo AAA também deverão se reinventar caso queiram resistir à popularidade das sandboxes e dos jogos de ação. A diferença é que, ao contrário de Pillars of Eternity, eles não têm um passado ao qual voltar. Dragon Age se diz “sucessor espiritual” de Baldur’s Gate, e várias franquias reivindicam o legado de uma “tradição” RPGística. Mas a verdade é que, mais do que nunca, estes jogos são cartas de despedida a uma origem perdida
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