Na semana passada eu falei sobre guerra e coisas que as pessoas preferem esquecer. Como tudo na vida, há sempre um contrário. Se animes como Shingeki no Kyojin simplificam o conflito aos seus ingredientes mais básicos, outros parecem batalhar desesperadamente para que nada se perca. Alguns acontecimentos são dolorosos demais para ser lembrados. Outros, ainda piores, são dolorosos demais para serem esquecidos.

Na animação japonesa, trabalhos assim aparecem de quando em quando. O recente Giovanni no Shima é um exemplo. Porém, a maior referência continua sem sombra de dúvidas O Túmulo dos Vagalumes, de Isao Takahata. O filme se tornou um marco do Studio Ghibli, do mundo do anime e da animação de uma forma geral, a ponto de ter eclipsado um pouco o diretor, cuja obra inclui o Kaguya Hime de que falei há tempos (e é aqui que o leitor começa a ver um padrão nas coisas de que escrevo).

A dor de pessoas comuns

A trama abre com o narrador, o garoto Seita, anunciando a data de sua morte. Em um flashback, somos levados ao Japão de alguns anos antes, em que Seita, junto à sua irmã, Setsuko, se tornam órfãos depois de sua cidade ser destruída por um bombardeio incendiário. A história então nos mostra a luta dos irmãos para sobreviver sozinhos num país devastado pela guerra, com um pequeno (e terrível) detalhe: sabemos que nenhum dos dois sobreviveu, e que em algum momento do filme nós presenciaremos seu último suspiro.

grave-firefliesO filme é de uma tristeza visceral, e seu poder está não apenas no sentimento de impotência que atiça em nós, mas na escolha de temas. Este não é o lugar para a discussão de estratégias, cenas de batalha ou personagens famosas. A guerra é mostrada vista “de baixo”, sem julgamento quanto a seus motivos ou causas. É a força das imagens, pura e simplesmente, que faz o truque: Seita tentando distrair a irmã após sua cidade, bombardeada, ter virado pó. Corpos desfigurados pelo fogo jogados em valas comuns. Setsuko sucumbindo à inanição.

Um crítico insensível talvez apontasse que, no final, O Túmulo dos Vagalumes não é lá tão diferente de Attack on Titan. Afinal, ele foca na parte “conveniente” da guerra (o sofrimento aos japoneses) ignorando as decisões nefastas que levaram o Japão à guerra em primeiro lugar. Contudo, a mera força dramática do filme derruba tais argumentos. Trata-se de um lamento sobre o sofrimento humano, que de tão forte e sincero é capaz de comover qualquer um, em qualquer época e contexto.

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O lúdico e o trágico

Videogames têm mais dificuldade em falar de guerra, e não por acaso. Não é à toa que o primeiro grande livro sobre jogos tenha sido publicado às vésperas da Segunda Guerra Mundial, com a conclusão de que o lúdico é incompatível com a guerra total. Não importa quão perspicaz, forte ou capaz com uma arma um soldado seja: nada o salvará de uma bala perdida, de uma bomba atômica, da gripe espanhola ou de um campo de concentração. A sobrevivência depende do acaso e de força maior, e “vitória” é algo que poucos encontram (ou mesmo buscam em primeiro lugar). Para uma mídia naturalmente competitiva e dependente de recompensas, traduzir esses dramas não é fácil. Tirar o poder do jogador frequentemente leva a jogos chatos, mas é justamente a falta de poder (sobre as balas inimigas, a liberdade de ir e vir, a própria declaração da guerra) que marca a angústia de um soldado. O resultado são batalhas horrendas mas nem tanto, em que é possível “vencer” fazendo as coisas certas na hora certa.

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Os que se lembram dessa batalha em Call of Duty 2 sabem do que estou falando

Há claro, quem tenha tentado mesmo assim. This War of Mine retrata a guerra do ponto de vista de civis, usando elementos de randomização (parecidos com os de Sunless Sea) e mecânicas de sobrevivência já vistas em games de zumbi. No entanto, ele é abstrato, retratando um conflito fictício em um país genérico (e vagamente eslavo). Mais próximo de O Túmulo dos Vagalumes é o francês Soldats Inconnus, ou Valiant Hearts. O título da Ubisoft Montpellier não esconde suas intenções. Lançado em julho do ano passado, no mesmo mês e exatos cem anos depois do começo da Primeira Guerra Mundial, é um esforço para que novas gerações não se esqueçam do grande confronto. O apelo é compreensível.

Se é impossível chegar à idade escolar sem ouvir da Segunda Guerra, a Primeira é condenada às notas de rodapé (já ouvi de um professor que ela teria sido “insignificante”). Sua representação no entretenimento é também mínima, e apesar de ter sido tema de uma geração de escritores e artistas variados, é difícil ver qualquer referência a essa produção fora de um jogo do Ken Levine (o mesmo professor me confessou nunca ter ouvido falar de seus escritores). Não há dúvidas, portanto, de que Valiant Hearts começou bem se queria impressionar.

valiant hearts annaSeu maior acerto, porém, é ter optado por um traço inocente de desenho animado. Como mostraram os quadrinhos de heróis dos anos 1990 (e, à sua maneira, o último Batman de Christopher Nolan), a estética “séria e sombria” está sempre a um passo do ridículo – ou, o que é pior, da lição de moral. Por outro lado, como prova o sucesso do pacifismo até caricato de Miyazaki, uma paleta de cor mais rica e um pouco de fofura fazem milagres na hora de passar uma mensagem.

Karl WaltValiant Hearts segue a história de quatro pessoas dos dois lados do conflito. Não há “inimigos” propriamente ditos: todos, PCs e NPCs,  são de algum modo inocentes, forçados a se matar por razões que nem eles nem (eu suspeito) os desenvolvedores do jogo entendem muito bem. O enredo consegue escapar do bocó, e não é difícil entender por quê. Por um lado, o game passa longe dos clichés pacifistas de crítica à “maldade humana”. Não há ninguém puxando as cordinhas: é o próprio maquinário da guerra que move, quase que sozinho, as coisas rumo a sua destruição.

Ao mesmo tempo, ele não nos poupa de nenhum detalhe. Ao longo das 4 horas de jogos vemos soldados metralhados e envenenados por bombas de gás, pilhas de corpos usadas como escudo humano, cidades arrasadas e mais. A estética “cute” não oferece nenhum consolo – pelo contrário, só torna o horror mais horripilante. Nas missões finais, os quicktime events e quebra-cabeças que compõem o gameplay passam uma sensação de urgência raramente vista no gênero. Modelar um campo de batalha é fácil. Fazer o jogador se sentir em um (com uma jogabilidade que se limita a andar para os lados e clicar em coisas) merece um aplauso de pé.

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É uma pena, pois, que a narrativa  insista pelo batido. Para um jogo com tanta ênfase no acaso e na complexidade da guerra, Valiant Hearts nos faz perseguir um vilão de desenho animado, com direito a um chapéu de caveira, risadas maléficas e um cientista de estimação responsável por todas as invenções da época, do gás cloro ao tanque de guerra. Heróis que socam vilões na boca e gênios malucos que descobrem a fusão nuclear enquanto cantam no chuveiro funcionam em um gibi do Capitão América, mas aqui são destoantes. É como ver Totoro voando com sua folha ao lado dos aviões Zero de Vidas ao Vento.

História errada, Freddie

História errada, Freddie

Apesar dos pesares, as dúzias de vídeos de YouTube de marmanjões chorando com o final da trama provam que o jogo funciona. Não é qualquer coisa que sensibiliza um gamer. Mas se há algo que O Túmulo dos Vagalumes e Valiant Hearts nos ensinam é que a guerra não é qualquer coisa.

De minha parte, confesso que não caí em prantos com o final. Mas não pude deixar de pensar nos meus dois bisavôs que lutaram na Grande Guerra, conquanto do lado da Itália e contra os austríacos. Eles sobreviveram, mas, infelizmente para eles, no game da vida real houve uma sequel. Seus filhos serviram em uma outra guerra: uns foram poupados, outros viraram soldats inconnus.gaetano