Dentro de breve chegará aos cinemas a adaptação live-action de Shingeki no Kyojin, ou Attack on Titan, um dos animes de maior sucesso dos últimos anos. Uma segunda temporada está para vir em 2016. Para os muitos fãs internacionais que se identificaram com sua trama de heroísmo e sacrifício, pode soar uma surpresa o fato de que, em sua terra natal, a obra foi recebida por certa controvérsia.
A série foi acusada de passar uma mensagem pró-militarista e de fomentar nostalgia pelas morais do regime de Hirohito. Mais precisamente, pelas fantasias de poder que instigaram a expansão do império japonês e culminaram no ataque aos aliados na Segunda Guerra Mundial.
A acusação é de coçar os olhos, e precisa de um certo contexto para quem, como nós, ocidentais, não acompanha a coisa de perto. O Japão tem uma relação complicada com sua memória histórica. Sua trajetória no século XX, pouco comentada no ocidente, envolve de invasões a países rivais ao uso de cobaias humanas para o desenvolvimento de armas bacteriológicas. Não é um histórico de se ter orgulho, e, após a bomba de Hiroshima, poucos se sentem confortáveis em colocar o dedo na ferida. Para o resto do mundo, o Império do Japão entra (e sai) dos livros de história como o lugar onde o pavor do apocalipse nuclear começou. O que não consola em nada as antigas vítimas do regime. Como nossa própria ditadura mostrou, é difícil acreditar em justiça quando os culpados vivem uma vida confortável e morrem de velhice ainda no poder. Ou quando são sepultados com pompa em um mausoléu do Estado, com direito a visitas oficiais de políticos importantes. Ou ainda quando, graças a disputas territoriais, líderes de estado apelam à história para insultar seus adversários.
A troca de farpas não é nova, nem a acusação ao meio. Do popularíssimo Space Battleship Yamato ao obscuro Shin Gomanism Sengen, mangás já se viram várias vezes no balaio de revisionistas, com maior ou menor razão. Não é, portanto, nenhuma surpresa que críticos tenham voltado as armas (com o perdão do trocadilho) contra a vibe “vamos à luta!” de Shingeki. Ainda mais depois de seu criador, Hajime Isayama, dizer ter baseado um dos personagens em Akiyama Yoshifuru, general do exército imperial japonês. Se isso não fosse o suficiente, os pôsteres do live-action escancararam a referência ainda mais, adotando um visual “Segunda Guerra” que deve ter deixado fãs confusos. O material tem direito a tanques de guerra, mochilas de campanha e até o filtro amarronzado que O Resgate do Soldado Ryan tornou marca registrada de dramas militares. Estaria Isayama realmente mostrando nostalgia pelo Japão de Pearl Harbor e do Massacre de Nanquim?
Críticas às “mensagens” de obras de arte dificilmente acabam bem. Talvez pelos críticos em questão reagirem mal quando alguém lhes informa que estão errados. Ou talvez pelas discussões estarem sempre a um passo do “se não concorda comigo, você foi manipulado e não sabe.” Pois bem, manipulação é algo difícil de se ver, mas desdobramentos não. E quais seriam os desdobramentos?
Em Hong Kong, manifestantes compararam a situação da cidade diante da China com a de Eren e Mikasa dentro da Muralha Rose. Um protesto chegou a contar com um boneco do titã colossal para dar inveja a muitos cosplayers amadores. No Brasil, os que participaram do alvoroço de 2013 devem se lembrar do “Attack on Dilma” e dos memes com o “gigante que acordou”.
O número de paródias usando material do anime para defender causas políticas é enorme. Internet afora, podemos achar desde o calote da Grécia à União Europeia:
Até uma crítica ao Obama (ou sátira aos republicanos, é difícil dizer):
O anime parece ter entrado a contragosto em disputas mais sérias do que a maioria dos otakus talvez ache confortável. Ver o nome de sua série favorita em meio a posts zangados e bombas de efeito moral não é, sem dúvida, a primeira coisa que passaria na cabeça dos fãs (embora não seja lá tão incomum). Mas se isso faz de Shingeki no Kyojin mais do que um “simples anime”, em nada carrega da polêmica que sofreu no Japão.
Os espectadores que vibram com a guerra aos gigantes nada sabem (nem querem saber) do legado ideológico do Império do Japão: é a simplicidade da série, a força de sua exposição e o reconhecimento nas personagens que nos move a torcer pelo seu sucesso. Todos apanhamos da vida, do governo e dos outros, e se nossos reveses não devoram gente, nem por isso são menores que os gigantes, ou nos fazem menos impotentes. Shingeki é, sim uma “fantasia de poder”: o poder de revidar quando sabemos ser impossível vencer.
Afinal de contas, “mensagens”, tal como a beleza, muitas vezes estão nos olhos de quem vê.
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