Os velhos RPGs de mesa não são o hobby mais popular do momento. As regras são complicadas, os veteranos nem sempre são receptivos aos iniciantes e a simples proeza de se reunir regularmente com um grupo de amigos por horas a fio é um desafio a qualquer adulto. Mesmo assim, há uma razão para avivarem a nostalgia dos que cresceram com eles e a curiosidade dos novatos. Suas possibilidades são tão vastas quando desejaram os jogadores. As regras existem como pretexto, nunca como jaula. Mais do que qualquer outro tipo de jogo, eles têm limites apenas na imaginação de seus participantes. E sessão após sessão, na medida em que uma história coletiva é esboçada, o tradicional “jogo de interpretação” se aproxima das brincadeiras de faz-de-conta que todos curtimos na infância.

É compreensível, portanto, que tanto egressos de RPGs de mesa quando saudosos de faz-de-conta se sintam ligeiramente insatisfeitos com o mundo dos videogames. Por mais sofisticado que seja, um software é sempre um software, e seus limites jamais serão páreo a uma mente fértil. Um mundo virtual é sempre o mesmo, independente de quantas vezes o visitamos. A ilusão de escolha sacia a imaginação, mas apenas por um tempo. Basta um pouco de familiaridade para percebermos que as ações de nosso avatares são contáveis; seus caminhos, binários, e os desfechos de sua jornada, predestinados. Quanto mais os jogos se estabelecem como sucessores do cinema e os gamers se rendem aos confortos da linguagem cinematográfica (com suas trilhas sonoras, dublagem e arcos narrativos lógicos), mais o jogador, de protagonista, passa a espectador.

Nem mesmo criadores fogem aos resmungos. Susan O’Connor, escritora de títulos com Bioshock e Tomb Raider, desabafou em termos parecidos um tempo atrás. Videogames, diz ela, transformam o impossível em possível. Caso nós os explorássemos bem, eles seriam quase como sonhos. A imagem é bonita, mas carrega algo mais. Sonhos não são apenas ilimitado, eles são também imprevisíveis, incontroláveis e, por vezes, terríveis. Basta uma noite mal dormida ou uma preocupação fixa para que virem pesadelos. Uma vez que chegado a esse ponto, acordar se torna uma aventura em si. Daí a pergunta: e se os games fossem de fato como sonhos? Aleatórios, inesperados, capazes de nos apavorar ou emocionar sem qualquer aviso? Seriam assustadores, talvez. Entendiantes, jamais.

‘Legos’ Narrativos

A sacada veio de Ken Levine, criador do aclamado Bioshock e ex-colaborador de Susan. Ao contrário de jogos narrativos, games de estratégia não têm caminhos traçados ou finais predeterminados. As variáveis são tamanhas que as possibilidades são praticamente infinitas. Jogue Civilization 100 vezes e você terá 100 experiências diferentes. E se o jogador decidir colocar seu percurso no papel – criando um AAR, ou after action report, como dizem os fãs do gênero? Eis que a experiência se transforma em uma história. E se, em vez de países ou potências globais, o jogo em questão tratar de pessoas? Daí, em vez de um épico nacional, temos a história de um indivíduo, um casal ou uma família, com todas as suas peripécias, amarguras e desencontros.

Se os analistas medievais soubessem que seu trabalho seria substituído por um jogo...

Se os analistas medievais soubessem que seu trabalho seria feito por um jogo…

O resultado é uma máquina de fazer narrativas que oferece oportunidades que nem o mais livre dos faz-de-contas consegue emular. São os lances de dados do RPG, multiplicados ao extremo e aplicados a tudo. É a própria frieza do computador, em seus cálculos e processos, que molda o caminho a ser seguido.

A ideia não é inédita. Roguelites, como tais jogos são chamados, são aventuras randomizadas. Dos itens iniciais e personagens encontrados no percurso aos próprios cenários e mapa mundi, quase tudo é (ou pode ser) gerado a cada interação. As possibilidades não são ilimitadas, mas são justamente os limites que tornam a experiência interessante. O jogador pode ir longe, abençoado de início pela boa sorte, ou encontrar seu fim em questão de minutos. Tal como, quando fechamos os olhos à noite, nós nos flagramos torcendo por bons sonhos e temendo nossos piores pesadelos.

O mar não é um amigo

O recente Sunless Sea leva o princípio um passo adiante. Não por ser inovador – na verdade, é um roguelite bem convencional – mas pela escolha de assunto. O jogo é um spin-off de Fallen London, espécie de visual novel de browser com alguns elementos de RPG. Na trama, a cidade de Londres vitoriana foi roubada por morcegos e transposta a um mundo subterrâneo. O jogador encarna um explorador do underzee, um mar das profundezas que separa a cidade caída de outros refúgios exóticos da civilização. O resultado é um encontro de Neverwhere de Neil Gaiman com O Chamado de Cthullu de H.P. Lovecraft, uma jornada steampunk por riquezas e conhecimento na sombra de criaturas abissais, loucura e o pior que a natureza humana tem a oferecer.

O underzee é mutável e se rearranja de tempos em tempos. Para refletir isso, a cada novo jogo o mapa é randomicamente gerado. Nenhuma das muitas ilhas encontráveis tem localização fixa: cada nova jornada é uma aventura do zero, e o jogador deve contar apenas com sua coragem. Não existem garantias. Cada zarpada é um passo em potencial em direção a um horror ancestral e inominável, ou problemas mundanos (mas não menos mortais) como fome e motins.

Se Sunless Sea nos choca – para o bem ou para o mal – isso diz menos respeito ao jogo do que a um fenômeno crucial do atual mundo de games. À medida que os jogos largaram seu “espírito de fliperama”, a promessa de desafio perdeu sua centralidade. Se anteriormente terminar o jogo era uma façanha que ganhava o respeito de todo um círculo de amigos, hoje se tornou o mínimo. Se segredos de games davam origem a verdadeiras teorias de conspiração, agora são escrutinizados em wikis especializadas. Se discos eram acompanhados de manuais com mais de cem páginas, hoje a trivialidade se tornou a nova regra, e ninguém é esperado a gastar mais de duas horas entendendo um título. Do protagonista que se tornou espectador, o gamer só reteve o desejo de controle: da progressão da personagem, dos rumos da história, da gravidade dos desafios, da certeza de um desfecho favorável e de um sorriso no rosto. Se há duas décadas o gamer foi um pioneiro, hoje é um paisagista: seu papel não é desbravar uma terra selvagem, mas curtir um minimundo à sua imagem. E reclamar quando não o encontra.

Roguelites como Sunless Sea impressionam porque nos tiram o controle. Não há aqui finais felizes ou atalhos misericordiosos. Seus mundos virtuais não são playgrounds, mas florestas inexploradas onde os fracos não têm vez. Isso é possível justamente graças à sua proceduralidade: sua composição aleatória, ditada pelo software. Esta frieza os torna mais versáteis que games normais, porém muito mais incoerentes – e, por isso mesmo, imprevisíveis – que uma narrativa humana, organizada por um mestre de RPG. Susan O’Connor pode ter exagerado ao declarar que games fazem do impossível o possível. No entanto, a linguagem procedural e suas várias aplicações mostram que oferecem algo único… e inclementemente divertido.