Fidelidade histórica em jogos é um dos pontos mais discutidos por entusiastas na disciplina – Embora, como defendi em outra ocasião, não necessariamente o mais importante. Para nós, historiadores, representar adequadamente coisas como sistemas políticos, mentalidades e transformações de longo prazo costuma ser mais importante do que saber que tipo de fivela de cinto ou rei ou príncipe usava.
Isso não significa que se preocupar com a representação de armas, roupas e edifícios em jogos históricos não seja importante. Para certos jogos – como os arqueogames – reconstituir elementos da cultura material é um objetivo de primeira ordem. Mesmo para jogos mais abstratos, como o nosso, é uma oportunidade de apresentar a leigos reconstituições do passado que fogem dos chavões comumente associados à era medieval.
Embora Os Triunfos de Tarlac seja um jogo bastante abstrato, nos esforçamos para desafiar esses clichês dentro dos limites que nosso material permitia.
Fichas de batalha
Dois clichés específicos de que queríamos distância diziam respeito à indumentária dos guerreiros – de longe, um dos aspectos da Idade Média mais fetichizados pela mídia. O primeiro era a imagem de soldados vestindo armaduras lustrosas feitas de placas de aço. Embora tenham se tornado um ícone de Idade Média, este tipo de equipamento é mais recente que as primeiras armas de fogo e só se popularizou de verdade no fim do século XV e no século XVI – para efeitos de comparação, na mesma época em que os europeus começaram colonizar a América.
O segundo cliché diz respeito aos irlandeses. Na cultura pop, habitantes da Irlanda e Escócia frequentemente são retratados como bárbaros que marchavam para a guerra nus e pintados de azul. Como escreveu uma importante historiadora do século XX – hoje devidamente criticada – é como se não houvesse diferença entre a Irlanda conquistada pelos ingleses e a Gália na época de César.
Há um motivo para o tropo: além das razões políticas relacionadas ao imperialismo britânico, é muito difícil obter informações sobre como os guerreiros da época de Tarlac realmente eram. Isso não é tanto um problema em relação aos ingleses, sobre cujos guerreiros existem bastantes fontes iconográficas e também arqueológicas – ex. figuras em manuscritos, selos, efígies funerárias e armas e armaduras que sobreviveram ao teste dos tempos.
Porém, a situação é diferente em relação aos irlandeses. Embora tenhamos fontes visuais sobre o período anterior à conquista inglesa (século XII) e sobre o início da era moderna (séculos XV a XVII), contamos com pouquíssimas evidências sobre o intervalo entre essas épocas.
Dessa maneira, não tivemos escolha senão expandir nosso leque temporal e incorporar fontes visuais mais distantes. Na medida do possível, esse material foi comparado a descrições narrativas tiradas da saga Os Triunfos de Tarlac. Em outros casos, contudo, tivemos de utilizar nossa imaginação.
Para evitar cair no clichê de uma Irlanda bárbara, decidi como critério de “desempate” que, na ausência de informações, basearíamos nossas personagens em armas e armaduras de um período posterior (sécs. XV-XVII), não anterior. Nosso exército gaélico, portanto, é provavelmente mais “moderno” que os soldados que marcharam contra os ingleses liderados por Tarlac Ó Briain, embora nem tão modernos a ponto de se confundir com os paladinos em armaduras brilhantes que viriam dominar os campos de batalha da Renascença.
O primeiro detalhe que salta aos olhos quando comparamos as duas fichas é o quão similares seus guerreiros são. Isto foi proposital. Exércitos na Irlanda eram, por necessidade, multiculturais: tanto ingleses quanto irlandeses contavam com soldados e mercenários provenientes de outras culturas. Nossa ilustração buscou atentar para esse fato, retratando soldados que bem poderiam se confundir no calor da batalha – algo que historicamente ocorria.
Fichas de devastação/destruição
A ficha de devastação se tornou a imagem mais icônica do nosso jogo. Foi ela que escolhemos para a capa do manual e todo o material de divulgação.
Aqui, todo o mérito pertence ao nosso artista, Vinícius Veneziani. Meu único briefing havia sido que as fichas deveriam incluir um assentamento – possivelmente um mosteiro – sendo saqueado.
Veneziani escolheu não um mosteiro qualquer, mas a Abadia de Clare, o exato lugar onde a saga que inspirou o jogo foi escrita. Ele também incluiu o Castelo de Bunratty – capital inglesa no reino de Thomond – e o antigo Castelo de Quin – outra importante fortaleza inglesa, hoje destruída.
A imagem não é exatamente fidedigna: na vida real, esses três lugares estão há dezenas de quilômetros de distância um do outro. Porém, inclui-los no mesmo quadro dá à imagem uma importância simbólica. Ele concentra três dos assentamentos mais importantes pertencentes às duas linhagens-chave do conflito: os Uí Bhriain e os de Clare.
Um detalhe curioso: os animais retratados nessa ficha são vacas Kerry. Trata-se de uma das raças contemporâneas de gado que mais se assemelham às vacas criadas na Irlanda na época de Tarlac.
A mesma vaca também aparece na nossa ficha de gado – que inclui, como easter egg, um auto-retrato do nosso artista (à direita)!
O Tabuleiro
Se a ficha de devastação se tornou o cartão de visitas do jogo, o tabuleiro é o elemento que mais recebe atenção dos próprios jogadores. É ao redor dele, afinal de contas, que passarão horas a fio durante suas partidas.
Nós sabíamos que ele precisava ficar não apenas funcional, mas bonito – de preferência, impressionante.
A tarefa ficou a cargo de outro de nossos artistas, Gabriel Cordeiro – que também se encarregou de colorir as fichas desenhas por Vinícius. Para tanto, ele se inspirou no Mapa Gough: uma obra cartográfica de meados do século XIV que representa a Irlanda e Inglaterra.
Os castelos são baseados em Bunratty, mesma fortaleza inglesa retratada na nossa ficha de devastação. Os longphoirt (assentamentos irlandeses), por outro lado, foram inspirados nos ráthanna e cathracha: tipos de residência circulares populares entre famílias gaélicas.
Aqui, fomos também obrigados a fazer concessões. Ráthanna e cathracha não foram os únicos tipos de fortaleza construídas por irlandeses na época em que o jogo se passa. Os Triunfos de Tarlac inclusive sugerem, em uma passagem, que Clonroad, residência principal dos Uí Bhriain, possuía muralhas e defesas de pedra. Teria ela sido, na vida real, mais parecida a um castelo que a um ráth?
Infelizmente, não sabemos. Boa parte dos assentamentos dessa época foram eventualmente abandonados. Em muitos casos, sequer sabemos seus nomes – ou mesmo sua localização exata! O que de fato sabemos é que pelo menos algumas das residências irlandesas da época seguiam esse modelo – por exemplo, Caherballykinvarga, no antigo reino de Corcamruad. E foi nelas que baseados o design do jogo.
Se esse processo criativo nos ensinou alguma coisa, foi que fidelidade histórica é importante, mas deve ser encarada como um horizonte, não como um requisito. É impossível fazer um jogo que seja uma fotografia perfeita do passado. Não temos informações suficientes (e, mesmo que tivéssemos, quem segura a câmera sempre afeta o resultado da imagem).
Certas escolhas artísticas podem nos ajudar a lidar com nossas lacunas de saber. No contexto do nosso jogo, o traço cartunesco de Vinícius Veneziani e as cores fortes de Gabriel Cordeiro deram à sua identidade visual um aspecto irreverente, que gera menos expectativas que um trabalho fotorrealista. Com sorte, ela também servirá de antídoto à densidade de suas regras, contribuindo para fazer de Tarlac um jogo mais acessível.
O fim da jornada
Esse é o último diário de desenvolvimento de Os Triunfos de Tarlac. Após mais de dois anos de desenvolvimento, nosso jogo finalmente terá seu lançamento oficial!
Espero que você tenha curtido acompanhar nossa jornada até aqui!
O material do jogo está disponível para download nesse endereço, em formato print & play.Planejamos também lançar uma versão digital nos próximos meses, que será incluída nessa mesma página.
Boa jogatina! Que suas campanhas na Irlanda da época de Tarlac também sejam um triunfo!
Historical accuracy in games is one of the most talked about topics among history enthusiasts– although, as I argued elsewhere, not necessarily the most important one. For us, historians, to adequately represent things like political systems, mentalities and long-term transformations is usually more relevant than to know which type of belt buckle a given king or prince used.
This does not mean paying attention to the representation of weapons, clothing and buildings in historical games is unimportant. For some – like archaeogames – recreating certain features of a material culture might be a first order priority. Efforts towards this goal can also be an opportunity to introduce laypersons to recreations of the past that challenge tropes often associated with the medieval era.
Although The Triumphs of Turlough is a very abstract game, we did our best to confront these clichés within the limits of our material.
Battle tokens
Two specific tropes we wanted to avoid at all costs concern the equipment worn by warriors – by far one of the most fetichized aspects of the Middle Ages. The first is the image of soldiers clad in shining plate armor. Iconic as it may be, this type of personal protection is actually more recent than the first firearms and only became truly widespread in the late 15th and 16th centuries – for effects of comparison, around the same time Europeans started to colonize the Americas.
The second trope concerned the Gaelic Irish. In popular culture, the Irish and Scottish from this period are often portrayed as barbarians that marched to war naked and/or painted with woad. As a famous 20th century historian – now duly criticized – once wrote, it was as if there was no difference between Ireland in the time of the English conquest and Gaul during the campaigns of Caesar.
There is a reason why this trope is so popular. In addition to political factors harking back to the centuries of British imperialism, it is very hard to obtain information about what warriors in the time of Turlough actually looked like. This is not so much an issue in relation to the English, about whom there are plenty of sources – e.g. figures in manuscripts, seals, effigies, and surviving arms and armour.
However, the situation is different in relation to the Irish. Although we have some visual sources from the period before the English conquest (12th c.) and from the Early Modern period (15th – 17th c.), there is preciously little evidence from the interval between these eras.
To address this gap, we had no choice to broaden our scope and include visual sources from other centuries. Whenever possible, this material was compared to descriptions of military equipment from the saga-text The Triumphs of Turlough. In other cases, however, we were forced to use our imagination.
To avoid falling into the cliché of a barbaric Ireland, I decided that, in the case of absence of data, we would base our artwork in arms and armour from a later period (15th – 17th c.). Our Gaelic army, therefore, is probably more “modern” than the soldiers that marched under Turlough O’Brien, although not modern enough to be taken for the paladins in shining armour that would dominate battlefields during the Renaissance.
The first thing one notices when comparing both tokens is how similar they are. This was intentional. Armies in Ireland were mixed by necessity: both the English and the Irish recruited soldiers and mercenaries from different cultures. Our artwork tried to account to that fact, portraying warriors that could well struggle to identify friends and foes in the heat of battle – something that historically happened.
Devastation/destruction tokens
The devastation token became the most iconic image of our game. It was the image we chose for the rulebook cover and all our promotional material.
Here, all the credit belongs to our artist Vinícius Veneziani. The only guideline I gave him during briefing was to include a settlement (possibly a monastery) being raided.
Veneziani chose not just any monastery, but Clare Abbey, the exact place where the saga that inspided the game was written. He also included Bunratty castle – the English capital in Thomond – and the old castle at Quin – another important stronghold, which was later dismantled.
The image is not quite true to life: in reality, these three places are located several kilometers apart from one another. However, including them in a single picture provides the token with symbolic meaning. It features three of the most importante settlements belonging to the main lineages involved in the conflict: the Uí Bhriain and the de Clare.
Devastation token Destruction token
An interesting detail: the animals in this token are modeled after the Kerry cow, one of the contemporary breeds that resembles the most the cattle reared in the time of Turlough.
The same cow is featured in our cattle token – along with a self-portrait of our artist (on the right)!
The game board
If the devastation token became our game’s greeting card, the board is the element that receives the most attention from players. It is around it, after all, that they will spend countless hours during matches.
We knew it needed not only to be functional, but also pretty – even better, it should be impressive.
The task fell on another of our artists, Gabriel Cordeiro (who also colored the tokens drawn by Vinícius Veneziani). To that end, he took inspiration from the Gough Map, a mid-14th c. cartographic source that features Ireland and Britain.
The castles are based on Bunratty, the same English stronghold from our devastation token. The longphoirt (Irish settlements), on the Other hand, were inspired by raths and cahers: circular holdings popular among Gaelic families of the time.
Here, we had again to make some concessions. Raths and cahers were not the only types of settlement built by the Irish in the period the game is set. The saga The Triumphs of Turlough even mentions, in one passage, that Clonroad, head place of the Uí Bhriain, had walls and fortifications made of stone. Is it possible that it resembled a castle more than a rath?
Unfortunately, we don’t know. Most settlements from this period were eventually abandoned. In many cases, we don’t even know their names – or even their exact location! What we do know is that at least some of the Irish longphoirt resembled raths or cahers – for example, Caherballykinvarga in the kingdom of Corcomroe. It was on these settlements that we based our design for the game.
If this creative process taught us anything, is that historical accuracy is important, but it should be pursued as a horizon, never as a requisite. It is impossible to make a game that is a perfect photograph of the past. We don’t have enough data (and, even if we did, the person holding the camera always affects the result).
Certain artistic choices can help us deal with knowledge gaps. In the context of our game, the Vinícius Veneziani’s cartoonish style and Gabriel Cordeiro’s bold colours brought some irreverence to its visual identity, granting the game a leeway in regards to detail it would not have enjoyed if we had pursued strict realism. With luck, this art style will also act as an antidote to the density of Turlough’s rules, making it more accessible to a larger audience.
The end of the journey
I hope you enjoyed following our journey so far!
This is the last dev diary for The Triumphs of Turlough. After more than two years of development, we will be having our official launch on August 15th.
The print & play game material can be downloaded here. We are also planned a digital version in the coming months, that will also be available at this same address.
Have a good game! And may your campaigns in Ireland in the time of Turlough also be a triumph!
scene of the Passion, better than passion scene for image subtitle.
Magnificent work.
Obrigado.
Gregory
(a descendant of Conor O’Dea)
Thank you very much, Gregory! Glad you enjoyed it