Uma gothic Lolita chega à escola, cachos de parafuso e olhos vítreos. O professor a encara divertido. “Cosplay?” A resposta nunca vem. Em questão de segundos, seus miolos estão espalhados pelo chão.
O professor não é um único. A lolita invade a escola e chacina indiscriminadamente todos que vê. Cidade afora, garotas parecidas iniciam sua própria matança. De suas bocas, uma única palavra:
A abertura de Mahou Shoujo of the End, de Kentarou Satou, é uma das cenas mais criativas, inusitadas e chocantes do mangá contemporâneo.
Releituras sombrias de garotas mágicas não são exatamente novidade. Satou, porém, carregou tanto nas tintas, na surpresa e no mau-gosto que encontrou seu nicho entre os talentos da atualidade.
Com outra de suas obras, Mahou Shoujo Site, prestes a receber uma adaptação, vale a pena viajar pelo mundo torpe do autor. E entender (ou pelo menos tentar) a fascinação mórbida que suas histórias despertam.
O que você faria se garotas mágicas existissem?
E se elas não fossem as colegiais samaritanas que conhecemos, mas entes assassinos desprovidos de vontade própria? Que transformam todos que matam em zumbis?
Mahou Shoujo of the End é o que espera figures de Sailor Moon se caíssem nas mãos de Sid Phillips do filme Toy Story. Sua trama não apenas desconstrói as heroínas fofas dos animes, como as transforma em antagonistas de um apocalipse zumbi.
O desastre é narrado pelos olhos de Tsukune, testemunha do ataque à escola que abre a trama. Com o passar dos capítulos, acompanhamos o garoto e uma aliança improvável de sobreviventes batalhando para escapar do pesadelo. E descobrir o que raios aconteceu com o mundo.
Satou estudou direitinho a cartilha da ficção zumbi. O mangá nos enche com um misto de pavor e esperança sádica na medida em que tememos (e torcemos) pela próxima morte perturbadora.
Os heróis são perseguidos por uma coleção diversa de garotas mágicas, com designs que vão da fofura kitsch de Sally the Witch às guerreiras high tech de Yuuki Yuuna. Algumas, como Parasyte M, não ficariam deslocadas em um pesadelo do Junji Ito.
Se você gostará ou não do mangá dependerá da sua tolerância aos excessos do gênero zumbi. Satou abusa do mau-gosto em um nível raramente visto em obras mainstream.
Suas personagens femininas estouram os limites do fanservice diretamente para o grotesco. Algumas de seus protagonistas – como um policial sociopata necrófilo – parecem um insulto deliberado aos leitores. Que nós nos flagramos torcendo por seu sucesso é um sinal do brilhantismo do autor, a despeito de seus esforços para nos repugnar.
Satou veste sua irreverência na manga. A obra nunca traz a pretensão de ser séria, mesmo quando seu enredo atravessa temas espinhosos.
A descoberta de que o apocalipse de mahou shoujo pode ter sido orquestrada por uma vítima de bullying traz à mente os atentados armados às escolas e o revanchismo (muitas vezes violento) praticado por aqueles que sofreram abuso.
Ao visitarmos a casa da vítima e encontrarmos desenhos das garotas mágicas assassinas, feitos ainda na sua infância, é difícil não se lembrar do twist final de Paranoia Agent.
Seria aquele o mundo real? Ou apenas uma fantasia de vingança transformada em histeria coletiva?
Mahou Shoujo of the End, Satou está compenetrado demais em seu horror nonsense para responder à questão. Felizmente, não é o caso de seu segundo trabalho, em vias de ganhar as telas.
Mahou Shoujo Site
Mahou Shoujo Site nasceu como um spin-off da obra anterior de Satou, embora se sustente pelas próprias pernas. É, também, uma obra muito mais afiada – e intrigante – que o hit que o lançou ao estrelato.
Aya Asagiri é uma garota introvertida que sofre bullying na escola. Seu irmão é um pedófilo sádico que sente prazer em torturá-la.
Quando as coisas pareciam não poder mais piorar, Aya descobre um site misterioso. Sua porta-voz, uma admin que se identifica apenas como Nana (“Sete” em japonês), promete lhe enviar um báculo pelo correio.
O “báculo”, Aya descobre, é a arma encantada de uma mahou shoujo. Ao usá-la contra as veteranas que a violentam, a garota se surpreende ao vê-las arremessadas à morte.
Não demora para que Aya seja contatada por outra mahou shoujo, Tsuyuno Tamatsura. Com a experiência de uma Mami Tomoe e a agressividade de uma Kyoko Sakura, Tsuyuno se torna sua mentora nesse mundo de magia e violência.
O contrato contém todas as letras miúdas da era pós-Madoka. Seus báculos se alimentam de suas energias vitais. Nana é uma presença desconcertante, desenhada no traço difuso dos creepypastas dos anos 2000.
A origem do site parece estar na Tempestade, um cataclismo misterioso anunciado na página principal. Seria ele um apocalipse? Um expurgo? Uma tragédia a ser evitada?
Motivadas por instruções ambíguas de Nana, algumas garotas passam a crer que ele é uma espécie de teste. Um que, para “vencer”, exige que as mahou shoujo matem umas às outras.
Com sangue, cinismo e humor negro, Kentarou Satou nos traz a versão “garotas mágicas” de Batalha Real e Jogos Vorazes.
A tirania da realidade
Ambos os mangás chegam, por vias estranhas, a uma verdade de que já falei em uma coluna passada.
Garotas mágicas não são apenas “mágicas”. Elas têm o poder de moldar a realidade aos seus desejos. Às vezes, mesmo dentro de suas histórias elas são vistas como dei ex machina, cartadas finais para solucionar os problemas da humanidade.
Não digo aqui o poder literal de decidir o que existe ou inexiste (muito embora ele seja parte de seu arsenal). Sua luta pelo “amor e justiça” atravessa testes cósmicos, profecias e juízos finais porque elas são a engrenagem necessária para fazer o mundo girar. Quer elas saibam – e queiram – ou não.
É um poder grande. Grande demais, talvez, para um único indivíduo possuir. E cujo aprendizado não raro leva ao julgamento de que o melhor uso para báculos – como bombas atômicas e decretos de exceção – é não os usar de forma alguma.
Isso soa bem àqueles que estão satisfeitos. Aos fracos e oprimidos, porém, a conversa é outra. Não é preciso muito para convencer alguém que amargou a vida na injustiça a virar as mesas de como o mundo funciona. Nem que isto implique em violência, revanchismos e novas tiranias.
É uma posição que o vilão de Mahou Shoujo of the End leva às últimas consequências. Após um percurso que envolve viagens no tempo, conspirações industriais e pactos com demônios, descobrimos que o apocalipse é apenas fachada para uma transformação ainda maior: reescrever a própria existência.
As garotas de Mahou Shoujo Site são as vítimas que trarão a mudança. Suas histórias são quase caricaturas de sofrimento, com episódios de abuso e violência tão brutais que arrepiariam até mesmo serial killers.
“Que tristeza!” diz Nana ao se apresentar a suas possíveis recrutas. E nós, espectadores, nos perguntamos qual seria a verdadeira “tristeza”. A tragédia por que passaram ou o fato de que sua revolta será canalizada para os piores fins possíveis.
Nas mãos de escritor temperado, Mahou Shoujo Site poderia se tornar um comentário fulminante sobre abuso, revanchismo e a pior face da natureza humana.
Infelizmente, Satou cai na armadilha de tantos que já escreveram sobre a violência. Ao carregar nas tintas para vender seu ponto, o mangaká confunde denúncia com apologia.
Suas personagens são tão bidimensionais e seus vilões, tão perversos, que não convencem como humanos de carne e osso. A sanguinolência de seu mangá é tão pornográfica que nos perguntamos se devemos nos arrepiar com o sofrimento ou sorrir dos membros decepados, troncos partidos ao meio e miolos esparramados.
Em uma cena icônica, uma garota tem a família chacinada por um mendigo. Transformada em mahou shoujo, ela o captura, prende a uma engenhoca e o tortura por meses. O episódio soa como uma releitura de A Pele que Habito reimaginada como uma gorefest de Robert Rodriguez. Que o mendigo morra de maneira inesperada, fatiado por um “fogo amigo” durante o duelo com outra mahou shoujo¸só reforça a impressão.
É correto esperar diferente? Talvez não. Satou é muito claro em sua proposta e a executa à perfeição. Infelizmente, há uma outra história dentro de Mahou Shoujo Site, tão reprimida quanto suas protagonistas, que busca a todo custo a pena que lhes dê a luz.
Quiçá um dia, na visão de outro autor, ela venha a ser contada.
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