Em 20 de março de 1995, cinco membros do culto apocalíptico Aum Shinrikyo embarcaram em linhas diferentes do metrô de Tóquio. Sob os braços, levavam bolsas do neuro-agente sarin enroladas em jornal. Em dado momento, armados com guarda-chuvas de pontas limadas, eles furaram as bolsas e fugiram.
O atentado ganhou as manchetes, nem tanto pela sua letalidade, mas pela natureza de suas consequências.
Apenas 12 pessoas morreram, mas milhares desenvolveram sintomas que iam de cegueira temporária a sequelas neurológicas permanentes. Muitos foram aposentados por invalidez, forçados a se demitir e impossibilitados de se integrar à sociedade.
De lá para cá, o Japão jamais seria o mesmo.
O gás sarin é uma arma química experimental desenvolvida pelos nazistas na época da Segunda Guerra. 26 vezes mais tóxico que o gás cianídrico, não chegou a ser usado no conflito, mas encontrou seu lugar depois, entre os executores de Pinochet, soldados de Saddam Hussein e apoiadores de Bashar al-Assad na Síria.
A substância não tem cheiro nem cor, e os corpos de suas vítimas não apresentam qualquer dano físico. É a arma perfeita para assassinos – e genocidas que querem apagar seus rastros.
Em março de 1995, nenhuma explosão, palavra de ordem ou jato de sangue para indicou o terror que estava para imperar. Pessoas misteriosamente começaram a passar mal e desmaiar. Algumas, para nunca mais acordar.
Numa coluna passada, eu mencionei como o atentado foi um dos eventos mais marcantes da história japonesa contemporânea. Sua repercussão inspirou um movimento próprio na cultura pop – o gênero sekaikei – que persiste até os dias hoje.
O que é válido para animes e mangás também é válido para a literatura. A histeria midiática, a atmosfera de incerteza e aura de inconcebível que cercava o atentado inspirou vários escritores a encarar seu país de outra forma.
Para amantes da literatura japonesa, o resultado são alguns dos livros mais intrigantes a terem saído da Terra do Sol Nascente nos últimos tempos.
Fantasmas entre nós
Não deixe o pseudônimo criativo enganá-lo. Banana Yoshimoto (nascida Mahoko) é uma das mais populares escritoras contemporâneas do Japão.
A fama é merecida. O que Inio Asano e seus mangás um dia fariam com as angústias dos millenials, Yoshimoto fez com as atribulações da Geração X, divididas entre anos 1980 que parecia bons demais para serem verdade e uma década de 1990 cujas feridas ainda custam a fechar.
De toda a sua obra, O Lago (em japonês, Mizuumi) é um dos exemplos mais diretamente relacionados ao atentado – e sutis na sua abordagem.
O enredo acompanha Chihiro, uma artista em seus 30 anos que garante seus sustento pintando murais. Medíocre na profissão, sem grandes ambições, namorado ou mesmo amigos inseparáveis, ela existe sem saber que se fato vive ou apenas espera o tempo passar.
Tudo muda quando conhece Nakajima, um rapaz frágil e introvertido, doutorando em genética, inteligente e anti-social. A princípio um “nerd” clássico, Chihiro logo percebe que o garoto esconde um lado sombrio.
Nakajima sofre de crises de choro e insônia. Para dormir, precisa se abraçar em uma grelha de mochi. Sexo o apavora mais do que qualquer coisa, e basta uma avanço para que tenha uma ataque de pânico.
Chihiro suspeita que ele tenha sido abusado na infância. Para sua surpresa, a verdade é ainda mais terrível – e surreal.
O horror na narrativa de Yoshimoto não é aquilo que esperamos quando lemos sobre cultos apocalípticos. Isto porque a Aum Shinrikyo não é um culto como outro qualquer.
Nakajima, ponto focal de O Lago, conta que foi raptado enquanto criança e levado para viver em uma comuna isolada do mundo exterior. Lá, como tantos outros que vivem o martírio do cativeiro, precisou aprender a “amar seus captores”. A diferença é que, para a seita de Shoko Asahara, isto era estranhamente fácil.
No seu auge, a Aum Shirikyo foi mais do que uma cabala de terroristas. A organização se tornou um verdadeiro mundo à parte, com seus próprios ministérios, departamentos de pesquisa e membros infiltrados em instituições de toda sorte.
Era também uma família, composta por pessoas que compartilhavam um forte sentimento de irmandade umas para com as outras. Muitas das quais, ao contrário de Nakajima, haviam vindo voluntariamente, arrastando cônjuges e filhos consigo.
Para garantir a obediência, os membros da comuna recebiam “receitas” de LSD e outras drogas, ministradas como remédio para que não suspeitassem que estavam sendo dopados. Asahara e seus súditos os induziam a pensar que não estavam mais no Japão, e sim num outro mundo – como a dimensão paralela de 1Q84 ficcionalizada por Haruki Murakami. À mercê de alucinações, amortecidos à uma realidade na qual não podiam mais confiar, os membros da seita só tinham a acreditar nos captores.
Yoshimoto nos apresenta uma depravidade muito pior que as torturas, abusos sexuais e confinamentos pelos quais sua personagem, Chihiro, imagina que Nakajima passou. Tal como o protagonista de Império do Sol – inspirado nas próprias experiências de J.G. Ballard em um campo de concentração japonês – ele descobre, aterrorizado, que é feliz em sua jaula dourada.
Nas algemas da Aum, Nakajima ganha uma família adotiva, cresce, tem suas primeiras experiências sexuais. Ao escapar e descobrir que sua mãe havia quase destruído a si mesma para salvá-lo, a culpa é grande demais para que ele consiga viver como um adulto funcional:
“Todo aquele amor que minha mãe forçou em mim logo depois que eu escapei… foi como uma sopa muito quente, penetrou fundo demais. As emoções dela eram muito fortes, como roupas espalhafatosas ou com muitos babados. Foi assim que eu a via.
No final, eu acho que foi culpa minha que meus pais se separaram e minha mãe faleceu logo depois.(…) Ela morreu porque usou muita energia. Ela escolheu fazer isso em troca de me ter de volta. Tudo aquilo que ela colocou em mim foi tirado dela. Ela sabia e o fez assim mesmo.(…)
Claro, eu não acredito que eu tenha muito tempo de vida à minha frente também, então na época era natural que eu pensasse: O que você está fazendo, mãe? Eu não quero essa vida, ela é sua!“
Nakajima teve sorte. Por conta do consumo desenfreado de alucinógenos, alguns sobreviventes da seita acabaram desenvolvendo problemas de fígado e sequelas permanentes. Sem uma Chihiro para lhes dar suporte, passaram a viver como fantasmas, isolados da sociedade, presos no limiar entre o real e o pesadelo:
Mino assentiu sem falar.
Então ele disse: “Eu não podia dizer antes quando você me mostrou as imagens mas… obrigado. Obrigado por nos pintar. Obrigado por ver, da primeira vez que nos encontrou, que apesar de sermos fantasmas, nós dois, que muito embora não deveríamos existir, nós estamos vivos.”
O atentado de 1995 foi um dos eventos mais traumáticos da história japonesa recente. Não, segundo Yoshimoto, pelos motivos mais óbvios.
Por mais horripilante que tenha sido o gás sarin, tão terrível quanto foi a insanidade que Aum provocou em seus próprios convertidos. E nas milhões de pessoas que, assistindo de suas poltronas, lendo as manchetes de jornal e deparando-se nas ruas com as vítimas do ataque, entenderam que o mundo em que viviam precisava ser repensado.
O submundo da humanidade
Ninguém entende mais dessas angústias que o romancista Haruki Murakami. Em livros como after the quake, Kafka à Beira Mar e 1Q84, os eventos de março de 1995 se tornaram uma mitologia em si. Como o próprio Murakami admitiu, a mera ideia de um caminho subterrâneo, oculto, já enche sua mente de histórias.
Frequentemente subestimado por editores (e leitores) ocidentais, que o tratam apenas como um exemplo de realismo fantástico, a mistura de nonsense, descrições da vida cotidiana e vibe “pop” de seus livros trazem um propósito maior:
[Quando Asahara se candidatou a deputado, em 1990], sua campanha foi um teatro singular. Dia após dia uma música estranha tocava de carros de som enquanto jovens em batas brancas e e máscaras gigantes de elefantes e do próprio Asahata ocupavam a calçada ao lado da estação de metrô, acenando e dançando uma giga incompreensível.
(…)
Eu não achei que fosse importante na época. Simplesmente tirei a imagem da minha mente como “algo que não me diz respeito”. (…) Muito provavelmente os intelectuais alemães durante a República de Weimar se comportaram da mesma forma quando viram Hitler pela primeira vez.
Murakaki explora o absurdo para tentar dar sentido àquilo que, aparentemente, não o tem. Pois, como ele mesmo diz, “em nosso mundo multifacetado, a inconsistência pode ser mais eloquente do que a consistência”.
Curiosamente, para um romancista tão talentoso no mundo do absurdo, seu trabalho mais incisivo veio justamente da não-ficção.
E não é difícil entender o porquê.
Em 1995, Murakami tinha acabado de voltar ao Japão após morar na Europa e Estados Unidos. Seus romances, escritos em um estilo despojado, com uma overdose de referências à cultura pop, levaram alguns conterrâneos a criticá-lo como um “anti-japonês”.
Com A Crônica do Pássaro de Corda (1994), Murakami silenciou os críticos ao abordar o polêmico incidente de Nomonhan (1939), em que tropas japoneses tentaram ocupar território mongol. Anos depois, retornou ao Japão para se reaclimatar ao país após um “exílio auto-imposto”.
O que encontrou ao chegar ultrapassou todas as suas expectativas. Não contente em reclamar do “sistema” e oferecer as platitudes de sempre, Murakami foi mais além: compilou uma gigantesca série de entrevistas com sobreviventes do atentado.
Num contexto tão traumático e numa sociedade tão marcada pela vergonha e pelo desejo de não chamar a atenção, o projeto foi verdadeiramente hercúleo. Felizmente, ele viu a luz do dia, e o livro Underground: O Ataque de Gás de Tóquio e a Mentalidade Japonesa foi publicado.
Ler O Lago e Underground lado a lado é uma experiência que chega a ser assustadora. Após o 11/09, a palavra “terrorismo” penetrou de tal forma nossos noticiários, vocabulário e ficção que criou para si uma aparência de familiaridade.
Esses dois relatos – fictício e verídico – deixam bem claro o quanto essa“aparência” não passa da superfície.
Ao contrário da profissionalíssima Al-Qaeda com seus experts em explosivos e tecnologia, os cultistas da Aum Shinrikyo eram amadores. A maioria sequer conseguiu furar todas as bolsas de sarin. Pelo menos dois acabaram eles próprios se envenenando com o gás.
Se por um lado devemos a isso o baixo número de mortes, por outro o fato só escancara o quão aleatório, imprevisível e arbitrário foi o episódio. Uma impressão que a biografia dos envolvidos só confirma.
Os asseclas da Aum não eram loucos, bárbaros, alienados, inimigos do “progresso”. Eram algumas das mentes mais exemplares que seu país havia produzido.
Ikuo Hayashi – de quem Sanetoshi Watase de Penguindrum é uma referência descarada – era um médico brilhante empregado no Ministério da Ciência e Tecnologia. Kenichi Hirose, que executou o ataque a uma outra linha, era doutor em física pela Universidade de Waseda.
Mesmo os membros “comuns” do culto, se não compartilhavam o currículo dos terroristas, sem dúvida compartilhavam sua obsessão pela razão. Hiroyuki Kano, um dos cultistas entrevistados por Murakami, diz que se uniu à Aum para encontrar uma fórmula matemática capaz de sistematizar o budismo.
Para o escritor, esses sinais nos deveriam fazer refletir sobre o que foi feito de errado. Não apenas no nível prático (a resposta das autoridades foi terrivelmente lenta), mas naquilo que se esconde além.
Como diz em um ensaio que acompanha as entrevistas:
O “fenômeno Aum” me perturba precisamente porque não é um problema dos outros. Ele nos mostra uma imagem distorcida de nós mesmos de uma maneira que nenhum de nós poderia ter previsto.
(…)Agora, é claro que um reflexo no espelho é sempre mais sombrio e distorcido. O côncavo e o convexo se invertem, mentiras triunfam sobre a realidade, luz e sombra nos enganam. Porém, remova estas falhas escuras e as duas imagens se tornam inquietantemente similares; alguns detalhes quase parecem conspirar um com o outro. É por isto que evitamos olhar diretamente para a imagem e porque, conscientemente ou não, nós continuamos a eliminar esses elementos sombrios do rosto que desejamos ver. Estas sombras subconscientes são um “underground” que nós carregamos conosco e um sabor amargo que continua a nos afligir muito tempo depois do ataque de gás a Tóquio ter nos infiltrado pelo subterrâneo.
Murakami não é partidário da Aum, nem (como tantos outros intelectuais amam fazer) deseja relativizar ou justificar as ações de terroristas.
Seu ponto é que o germe que resultou no atentado, a obsessão com certezas e a espiritualidade doentia que se materializou na seita de Asahata faz parte de nós – e pode brotar novamente a qualquer momento.
Yoshimoto não podia concordar mais. Como diz sua personagem Nakajima:
Eu então percebi, da forma mais física possível, que ser lógico e lúcido não é a mesma coisa que manter todas as coisas iguais, sem perturbá-las. Quando você chega a um estado de homogeneidade é porque você já se perdeu. Só assim você chega a este estado em primeiro lugar.
Nakajima, obviamente, fala da Aum. Para garantir obediência completa ao líder, famílias eram por vezes separadas; vínculos emocionais, desencorajados. O próprio Asahara dispunha de um harém de devotas – para seu própria satisfação, mas também para reforçar sua própria autoridade.
Se Murakami tem medo, é porque não acha que isso esteja restrito à seita. Também na sociedade humana, no mundo “normal” e “desejável”, a narrativa do coletivismo, da hegemonia e da submissão absoluta é uma realidade.
Uma realidade que nós, por mais que protestemos, não podemos negar:
E você? (Estou usando a segunda pessoa, mas é claro que isso inclui a mim também).
Você nunca ofereceu uma parte do seu Eu a alguém (ou alguma coisa) e recebeu em troca uma “narrativa”? Será que nunca confiamos alguma parte da nossa personalidade a algum grande Sistema ou Ordem? E, neste caso, será que este Sistema em algum ponto já não nos pediu alguma espécie de “insanidade”? Será que a narrativa que você possui é real e verdadeiramente sua? Será que seus sonhos são realmente os seus próprios sonhos? Ou será que são visões de outras pessoas que podem a qualquer instante se transformar em um pesadelo?
Obviamente, o oposto não é a solução. Para o bem ou para o mal, compartilhamos um espaço e precisamos de normas para garantir o bem estar de todos. A alternativa para as leis, a hierarquia, a obediência e os valores comuns é um mundo pior do que qualquer tirania.
“Autonomia e dependência”, diz Murakami, “são como luz e sombra”. Aqueles que encontram o equilíbrio conseguem viver vidas felizes. Aqueles que fracassam, por outro lado, embarcam em uma jornada sombria. Com consequência funestas para todos ao seu redor.
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