O fim dos anos 1980 teve os adventure games. Nos consoles, por volta da mesma época, os jogos de plataforma brilhavam. O final dos anos 1990 teve sua “Era de Ouro” dos RPGs isométricos. E os anos 2000 testemunharam a glória dos FPSs militares.
Durante toda a história dos videogames, alguns gêneros foram populares a ponto de marcar suas épocas e determinar (para o bem ou para o mal) o caminho a ser seguido pela indústria.
Entre os sucessos de Skyrim, GTA V, Witcher 3, Metal Gear Solid V e tantos outros, a impressão atual é de que os games de mundo aberto se tornaram o “espírito da época” dos anos 2010 – e, quem sabe, de tudo o que virá pela frente.
Os números não mentem. Segundo uma estimativa, o gênero foi responsável por 30% de todos os jogos vendidos no ano de 2014. Minecraft, lançado cinco anos atrás, ainda marca presença na listas de bestsellers. O buzz em torno de No Man’s Sky, mundo aberto procedural que se gaba de exigir 4 bilhões de anos para ser completado, fala por si só.
De um ponto de vista tecnológico, há um certa beleza poética nisso tudo. A escritora de games Susan O’Connor certa vez disse que os jogos estavam chegando ao ponto de se tornarem iguais aos sonhos: tudo o que imaginamos pode ganhar vida.
O mundo aberto é a realização mais extrema dessa utopia. Mais do que em qualquer outra época, mergulhar em um mundo paralelo – o tão sonhado “círculo mágico” – nunca foi tão fácil.
Quem acompanha a blogosfera, no entanto, chega a uma conclusão diferente. Comentaristas têm escrito (e repetido várias e várias vezes) que o gênero está saturado ao ponto da exaustão. Na intenção de repetir os sucessos dos grandes hits da década, produtoras prezaram quantidade sobre qualidade, lançando no mercado uma infinidade de títulos similares e pouco inspirados.
Na opinião desses colunistas, o open world se tornou, de fato, o “espírito” da nossa época, mas não da forma que a indústria de games, com seus números gloriosos, parece indicar. Eles se tornaram o novo “always-online”, uma imposição arbitrária que nada acrescenta e muito prejudica.
É inegável que certos jogos de mundo aberto revolucionaram o mundo dos games. É também inegável que esses games se tornaram especiais justamente por não terem tido medo de entregar liberdade aos jogadores.
Porém, há mais em uma experiência inesquecível do que um mapa grande. Na intenção de repetir sucessos do passado, algumas produtoras parecem ter abatido os gansos dos ovos de ouro. Atentas aos detalhes – e a todo o jargão de marketing – elas se esqueceram do aspecto mais importante.
Sandbox e open world não são a mesma coisa
Um indicativo tanto do sucesso quanto da decadência dos jogos de mundo aberto é a frequência com que “sandbox” e “open world” são tratados como sinônimos.
De fato, muitos games open world são sandboxes. Mas esses gêneros têm fundamentos bem diferentes, que podem nos ajudar a entender por que tantos games começaram a nos cansar – ou, pelo contrário, porque alguns continuam a nos maravilhar.
Mundo abertos, fiéis ao próprio nome, são quaisquer jogos que nos dão a liberdade para explorar seu cenário da maneira como quisermos. Seu contrário são games de design linear, que “selam” certas partes do jogo (com loading screens, transições de nível etc) para controlar a experiência do jogador.
Mundo abertos, por si só, não dizem nada a respeito do conteúdo que o jogador possa encontrar. Um game pode adotar um level design aberto mantendo exatamente as mesmas limitações de seu equivalente linear, “salpicando” quests e NPCs por todo um mapa, em vez de concentrá-los em corredores ou salas pequenas.
O estilo tem seus fãs e suas vantagens, mas não necessariamente dá qualquer liberdade além da de locomoção. Em alguns casos, são um jeito simples (e um tanto de preguiçoso) de “inchar” um jogo, compensando falta de diversidade por volume.
Sandboxes, por sua vez, são jogos que podem ser jogados “livremente”, sem um direcionamento autoral onipresente. A ideia, como o próprio nome já diz, é a do velho tanque de areia. O jogador pode produzir o que quiser, nos limites da sua própria imaginação.
Em uma sandbox, a prioridade não é apresentar coisas interessantes, mas dar ao jogador ferramentas para que ele as desenvolva por conta própria. Como dizem alguns designers, pensar em sandbox requer encarar o jogo não como uma história, mas como um playground.
Até que ponto um mundo aberto deixa de ser uma sandbox é um assunto para muito debate – e uma boa dose de opinião. Os frequentadores do RPG Codex, famosos por seu purismo, certa vez fizeram circular o seguinte gráfico:
Nessa modelo, apenas os jogos realmente abertos, como Minecraft e os simuladores da série Tycoon pode ser considerados sandbox. Este ponto de vista não é compartilhado nem pelos grandes serviços de venda. No sistema de tags do Steam (alimentado por usuários), o rótulo sandbox é aplicado para Fallout, GTA e Skyrim, os três mundo abertos ma non troppo na figura acima.
Apesar desses jogos imporem limites à criatividade do jogador, é inegável que conservam o espírito de “faz de conta” que está na origem do gênero. Se perguntarmos a seus fãs, provavelmente ouviremos que aquilo que separa esses games de outros mundo abertos é a capacidade de “ir contra as vontades do jogo”. No caso de GTA, em especial, “quebrar as regras” se tornou uma subcultura em si.
No mundo do design de games, essa “rebeldia” tem um nome conhecido.
O gameplay emergente
Eu já falei de jogabilidade emergente em minha coluna sobre os roguelites. Para recapitular, o gameplay é emergente quando o jogador tem espaço para inventar estratégias ou possibilidades que não foram pensadas pelos desenvolvedores.
No clássico Doom, certas pessoas notaram que correr na diagonal era mais eficiente do que seguir para a frente. O resultado foi uma geração de caçadores de demônios que andavam como siris.
Já no MMO War Thunder, jogadores descobriram uma estilo muito mais eficiente de ataque kamikaze.
Em alguns casos, o entusiasmo é tanto que gamers chegam a criar não apenas estratégias, mas até objetivos próprios.
Quest nenhuma em Skyrim incentiva pessoas a fazer enormes montanhas de queijo (ou panelas, cabeças, ou qualquer outra coisa). O controle para apanhar e empilhar objetos, aliás, sequer é introduzido no tutorial. Isto não impediu jogadores de transformarem um RPG sobre um caçador de dragões em um episódio de Acumuladores.
Da mesma forma, quando os desenvolvedores de Fallout 4 criaram um sistema de combate corpo-a-corpo, eles não previram que isso traria Saitama para a Commonwealth.
Essas brincadeiras não são apenas uma forma de descontrair ou de levar o jogo menos a sério. Na verdade, elas são a resposta de uma pergunta que certamente já ouvimos (ou fizemos) alguma vez na vida.
Por que jogos são tão viciantes?
Raph Koster, um dos mais importantes teóricos do design de games, se perguntou isso uma vez. Ele chegou a uma resposta inusitada. Jogos viciam porque nos fazem aprender.
Para o designer, o “vício” dos games vem da sensação de desafio que sentimos ao “desbravar” um sistema. Encontrar a melhor combinação para uma equipe, construir o equipamento perfeito, descobrir a estratégia mais eficiente para derrotar um boss, garantir que nenhuma personagem morra.
Todo jogo, no fundo, é um tipo de quebra-cabeça. Enquanto estamos tentando “encaixar suas peças”, a experiência nos anima. Por mais paradoxal que pareça, nós nos divertimos mais quando temos problemas para resolver.
Porém, infelizmente, somos seres inteligentes, e cedo ou tarde encontramos uma solução para qualquer desafio. Quando isso acontece, jogar deixa de ser uma descoberta e se transforma em um exercício arbitrário de grinding. As coisas passam a ser feitas apenas por fazer. Nas palavras de Koster, como um trabalho menial em um escritório.
A comparação do designer não podia ser mais certeira. Pelo menos um colunista disse que se cansou de games de mundo aberto porque se sentia em um segundo emprego. Ele não é o único. Alguns veteranos de MMO já contaram que, quando chegam em casa para jogar, sentem que estão saindo de um serviço para entrar em outro.
Quer dizer que jogos têm um “prazo de validade”? Não exatamente. A grande sacada de Koster foi perceber que as pessoas não paravam por aí. Bichos criativos como os seres humanos são, quando gamers “esgotam” os problemas do jogo eles começam a criar os seus próprios.
Missões solo, builds alternativas, personagens fora dos moldes. Homenagens à cultura pop, caminhos inusitados, faz de conta. Com um pouco de criatividade e um jogo aberto o suficiente, um mesmo game pode se transformar em dois, três ou quatro bilhões.
Skyrim, GTA, Just Cause e similares não conquistaram nossa geração apenas por serem mundo aberto, mas por encorajarem o gameplay emergente. Na ideia de replicar seu sucesso, certas produtoras miraram no alvo errado. Não importa quantos quilômetros quadrados um mapa tenha, quantos colecionáveis estejam espalhados, a quantos níveis se possa subir. Sem a liberdade para criarmos nossos objetivos, games são apenas trabalho.
Os jogadores sabem disso, e é por essa razão, eu imagino, que a nova “moda” está deixando tantos desafetos. Tal como os roguelites, sandboxes nos entregam uma coisa única. Em tempos de gráficos cinemáticos e comparação com outras mídias, elas proporcionam uma experiência 100% lúdica. Quando nos acostumamos a isso, é difícil voltar atrás.
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