2016 pode estar apenas começando, mas alguns jogos, de tão aguardados, nos fazem pensar que o tempo não anda. Para mim – e, imagino, tanto outros que acompanham a renascença dos RPGs isométricos – é o caso de Torment: Tides of Numenera.
O game da inXile foi anunciado em 2013, já arrecadou mais de US$ 5 milhões no Kickstarter, teve a data de lançamento adiada algumas vezes e agora está em early access. Todo cuidado é pouco: o que Pillars of Eternity fez com Baldur’s Gate e Wasteland 2 fez com Wasteland e Fallout, Tides of Numenera pretende fazer com Planescape: Torment.
É difícil navegar por fórums de CRPG sem topar com uma menção ao título da Black Isle. Planescape: Torment é um dos mais populares games que ninguém jogou. Devido à sua arquitetura contraintuitiva, o RPG foi um tremendo fracasso de vendas. Ao mesmo tempo, ele guarda a honra de ser um dos jogos mais complexos e bem escritos de todos os tempos.
Tides of Numenera promete unir o útil ao agradável. Ao contrário de seu “predecessor espiritual” e suas inclementes regras de AD&D, o game é baseado no sistema Cypher, que preza pela simplicidade e clareza.
O que sairá da experiência só saberemos nas próximas semanas (ou meses). Felizmente, não precisamos esperar para ter um gostinho do que está por vir. Tides of Numenera é inspirado um RPG de mesa criado por Monte Cook e lançado em 2013.
Se o livro de referência é algum indicativo, gamers podem esperar um 2016 bombástico. Numenera não é apenas o cenário mais criativo a dar as caras na “renascença isométrica”, como tem o potencial de ser um jogos mais profundos dos últimos tempos.
Quão profundo? A ponto nos convidar a questionar o que é ser humano.
O que é ‘Numenera’?
Numenera é um mundo de ficção científica disfarçado de fantasia. Ou é assim como o descreve seu criador, Monte Cook, no livro base do cenário. Inspirado na 3ª lei de Arthur C. Clarke (“qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”), Cook nos apresenta uma sociedade medieval construída sobre as ruínas de uma grande civilização futurista.
Na verdade, não apenas uma, mais oito. O Nono Mundo, como se chama o planeta de Numenera, acompanha a vida da humanidade após oito apocalipses. Quem foram os outros povos? Por quanto tempo eles permaneceram vivos? O que os extinguiu? Ninguém sabe dizer. Para os humanos do futuro, as “maravilhas” do passado não passam de magia.
Numenera não é ambientada em em um futuro “próximo” de alguns séculos ou milênios. Pelo contrário, o Nono Mundo tem início mais de um bilhão de anos depois dos nossos dias. É um futuro tão, mas tão distante que a própria natureza já não é mais a mesma.
O sol inchou e engoliu Mercúrio. Os continentes se unificaram em uma nova Pangéia. Todas as plantas e animais mostram sinais de engenharia genética. Mesmo apontar o que é “natural” ou “artificial” tornou-se um desafio.
Os habitantes do Nono Mundo não fazem ideia do que aconteceu, mas nem por isso deixam de fazer uso das coisas que os antigos deixaram para trás. Estes “detritos” das eras passadas são os “numenera”, máquinas, instrumentos ou peças cujas funções originais foram perdidas, mas que os novos humanos reaproveitam da forma que podem.
Tal com em Fallout e outras ficções pós-apocalípticas, os poucos que preservam algum conhecimento científico o protegem com devoção sectária. A Ordem da Verdade – versão ainda mais futurista do Brotherhood of Steel – é uma cabala de “cientistas” que exerce sobre o Nono Mundo o mesmo poder de que a Igreja Católica usufruía na Idade Média.
O singular do cenário é justamente o quão distante ele é do nosso presente. Para se ter uma ideia, o período jurássico terminou por volta de 145 milhões de anos atrás. Estamos falando, portanto, de um futuro quase sete vezes mais longe da nós do que nós estamos dos dinossauros.
É possível imaginar um mundo tão diferente? Para alguns, com certeza não. Em 1922, o grande dramaturgo George Bernard Shaw escreveu uma peça ambientada em um futuro “tão longe quanto alcança o pensamento”: o ano de 31920 d.C. Sua brincadeira sequer chega perto do exercício mental que Numenera nos propõe.
Já para outros, não há limites para a imaginação. Nos últimos tempos, não apenas autores de ficção científica, mas também historiadores começaram a pensar na humanidade em uma perspectiva cósmica. E as ideias que eles levantaram podem mudar completamente a forma como vemos o mundo.
A “Big History” e o futuro da humanidade
Historiadores costumam brincar que não é possível estudar “Deus e a sua época”. É preciso ter um foco, nos limitar a alguma época ou lugar. Do contrário, seríamos afogados em trabalho infinito.
Ou, pelo menos, é o que diz a maioria. Outros, mais rebeldes, decidiram pensar diferente.
“Big History” é uma tentativa de fazer o que Monte Cook sugeriu com Numenera: investigar toda a história, desde o Big Bang até o fim dos tempos.
O termo foi inventado nos anos 1980, mas a ideia não é nova. O sonho de uma história “completa”, que fosse capaz de nos “colocar” na galáxia, ou mesmo prever o que seres humanos farão no futuro já convive conosco há algum tempo.
Ele já apareceu, inclusive, em vários clássicos da ficção científica. Entre eles, a saga Fundação, de Issac Asimov, e Last and First Men, de Olaf Stapledon – que o próprio Cook cita como inspiração de Numenera.
A questão, que tanto fascinou esses autores, é que pensar em uma “história cósmica” requer levar em conta coisas que mal conseguimos imaginar. Um bilhão de anos é tempo suficiente para que os continentes se rearranjem, extinções em massa aconteçam e mesmo o Homo sapiens evolua para uma nova espécie.
Em nossa rotina de anos, décadas e séculos, é surreal pensar nisso fora de um programa do Neil deGrasse Tyson. Como seriam as pessoas desse futuro remoto? O que aconteceria com os países após mudanças geológicas? Existiria cultura humana? Existiriam humanos?
Nessa escala, as perguntas são outras. De onde viemos? Qual o sentido da vida? Para onde a civilização caminha? O que significa ter “humanidade”? A ciência deixa de ser uma ferramenta para resolver questões pontuais para tentar responder aos antigos mitos de origem.
Qualquer semelhança com o mundo da religião não é mera coincidência. Não é a toa que, em Numenera, a Ordem da Verdade abriu mão da fachada acadêmica para se transformar em um culto, com direito à sua própria liturgia e guerras santas contra facções hereges.
Os novos “pensadores” têm mais em comum com os antigos sábios do que com os pesquisadores de hoje em dia, com sua rotina burocrática e seus departamentos bem divididos. Trabalhando em conjunto, eles não buscam conhecimento especializado, mas uma “teoria de tudo”.
Rumo à psico-história?
O problema é que com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. E com conhecimento absoluto, somos lembrados de algo que nossos antepassados já sabiam muito bem: a consciência do bem e do mal traz consigo o sofrimento.
Se realmente existisse uma “teoria de tudo”, o que aconteceria com nosso livre arbítrio? Se nossa inteligência, nossa morte e mesmo nossos gostos e inclinações pudessem ser teorizados e previstos, nós continuaríamos realmente no controle?
Qual o sentido de viver se tudo está “escrito nas estrelas” – ou nos átomos, genes ou números?
Não é preciso esperar um bilhão de anos para fazer a pergunta. Em nossos tempos de big data, transhumanismo e genoma decodificado, muitos cientistas já começaram a perder o sono.
Felizmente para nós, a maioria acredita que o livre-arbítrio é real. O universo humano é muito complexo para ser ditado apenas pelas leis da física, ou quaisquer outros princípios elementares. E quando mais subimos na “escada” da sociedade humana – do nosso destino pessoal à trajetória de países, civilizações, planetas – mais complexas e imprevisíveis as coisas se tornam.
Mas Numenera não para por aí. O Nono Mundo não é apenas futurista: é construído nas ruínas de civilizações que tiveram o poder de alterar a própria natureza. E por “alterar” não falo de coisas simples, como desviar o trajeto de um rio, mas de transcender a mortalidade, construir estrelas, reescrever as leis da física.
O que impede seres humanos de usarem esse poder para controlar o desenvolvimento da espécie? De decidir quem nasce e quem morre, de projetar indivíduos “sob medida”, de fundir tecnologia e natureza até o ponto em que não saibamos o que é uma coisa e o que é a outra?
Sondas Von Neumann
Essa é uma daquelas hipóteses que parece boa, até pensarmos nela com mais calma. Graças à Mass Effect, temos um retrato bem convincente do que seria o “pior cenário”.
No game da Bioware, a humanidade descobre ruínas alienígenas e entra em contato com tecnologias avançadas. Graças à isso, a ciência avança a um patamar nunca antes visto, permitindo fontes infinitas de energia, viagens intergaláticas e o contato com outras civilizações.
Em dado momento, no entanto, fica claro que tudo não passa de uma armadilha. A tecnologia em questão foi desenvolvida pelos Reapers, uma raça de naves ciborgues que invade a galáxia a cada 50000 anos para extinguir toda a vida sapiente.
A “ajuda” que os Reapers oferecem é, no fundo, uma ferramenta de controle. Tal como o monólito de 2001, eles “forçam” as espécies a evoluir de uma maneira previsível e observável.
Os Reapers também têm uma “teoria de tudo”. Eles prevêm que a inteligência artificial inevitavelmente destruirá a vida na galáxia. Para eles, a única forma de impedir o desastre é evitar que comece: eliminando os inventores antes que dêem o passo final.
Destruir ou incorporar?
Se fãs de Mass Effect se decepcionaram com o final de sua saga, talvez lhes seja um consolo saber que a Bioware não foi a primeira a contar essa história. Nausicaa do Vale do Vento, um clássico de Miyazaki e outra inspiração para Numenera, antecipou a jornada do Comandante Shepard em mais de trinta anos.
Nausicaa se passa em um cenário muito parecido com o RPG de Monte Cook. O mundo civilizado foi destruído pela guerra, e as pessoas sobrevivem de “detritos” de uma época mais evoluída. Tal como em Numenera, humanos usam relíquias do passado sem saber como elas funcionam, e a tecnologia caminha bem próxima da magia.
A diferença é que, no conto de Miyazaki, a natureza decide revidar. Para salvar o planeta da aniquilação, o mar podre – uma floresta tóxica de fungos e insetos – começa a se espalhar pela superfície terrestre.
Nausicaa acredita que a natureza não está errada, e que se os humanos pararem de agredi-la, tudo voltará ao normal. A verdade, no entanto, está muito além do que ela imaginava.
Em um fim digno da trilogia da Bioware, Nausicaa encontra uma inteligência de uma civilização passada, que lhe conta que o mar podre não é natural. Ele foi desenvolvido por seres sapientes para “trazer ordem ao caos”, e “salvar” a humanidade por meio de sua destruição. Só um apocalipse, diz ela, protegeria os seres humanos de acabarem com todo o planeta.
Mass Effect joga a escolha em nossas mãos como um grande dilema moral. Nausicaa, por outro lado, não tem nenhuma dúvida sobre qual é o caminho certo:
Morrer, sofrer, ser extinto não são coisas ruins. Elas fazem parte da natureza, e o ser humano, para viver em harmonia com seu ambiente, precisa aprender a aceitá-las. A vida é arriscada e imprevisível, mas é assim que as coisas devem ser. Nunca, em hipótese alguma, nós devemos controlá-la.
Será muito interessante ver o que a equipe da inXile pretende nos contar desse dilema. Felizmente, pelo menos dessa vez nós não dependemos dos desenvolvedores. Por se tratar de um RPG de mesa, todos nós podemos vivenciar nosso futuro distante no Nono Mundo. E decidir, por nós mesmos, o que nos fará humanos daqui há um bilhão de anos.
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