Parece óbvio que mídias tão contemporâneas como os videogames sejam otimistas em relação ao futuro. Por mais que Deus Ex ou Fallout nos lembrem de consequências nefastas da tecnologia, a ideia de que “progresso” – em alguma forma – é algo bom não precisa de justificativas.
Mais ou menos, dirão alguns. E estarão certos. Embora não haja falta de árvores tecnológicas e sistemas de promoção para nos lembrar de que “é para frente que se anda”, de quando em quando surge um jogo que nos sugere o contrário.
Thea: The Awakening, um game independente que passou despercebido em meio a tantos lançamentos no ano passado, é um deles. Nele, o objetivo não é dominar o mundo ou obter glória, mas restaurar o que foi perdido.
No início, o universo vivia em harmonia, e os deuses orientavam os seus seguidores. Um dia, contudo, os humanos destruiram a Árvore Cósmica, o pilar que unia o mundo dos mortais ao plano divino. O resultado foi a Escuridão, uma longa era das trevas que tolheu os poderes dos deuses e jogou o mundo às forças malignas.
Em Thea, o jogador encarna um grupo de devotos de um dos antigos deuses, que buscam restaurar o mundo ao que era antes. Guiando um grupo de seguidores que sobrevivem a duras custas em uma aldeia isolada, ele deve encontrar um meio para dissipar a Escuridão.
Thea é uma daquelas pérolas de que nós não sabemos que precisamos – até, é claro, jogá-las. O jogo mistura uma base de estratégia 4x (na linha de Civilization e Endless Legend) com mecânicas de RPG e elementos de roguelites.
Por mais implausível que pareça, a aposta entrega. Os cenários e eventos são gerados proceduralmente, fazendo com que cada jogo seja diferente do anterior. Desafios podem ser resolvidos não só pelo combate, mas pela diplomacia ou perspicácia. Escolhas têm consequências, muitas vezes severas.
Mais interessante, no entanto, é o seu cenário. Thea possui uma identidade visual bem característica, e seu mundo fantástico é inspirado na mitologia eslava. Na jornada para garantir a sobrevivência de sua aldeia, o jogador encontrará Baba Yagas, Rusalkas, Utopiecs e todo um bestiário de criaturas inéditas.
Qualquer semelhança com a saga de Geralt de Rivia não é mera coincidência. O jogo é uma co-produção anglo-polonesa, e tem em sua equipe vários veteranos da série The Witcher.
Para quem foi introduzido ao leste europeu pelas espadas do caçador de monstros, Thea é um contraponto imperdível. Em contraste com o estilo agressivo do hit da CD Projekt Red, a atmosfera de Thea é mais sutil e amigável – ao menos à primeira vista.
Os drowners – ou Utopiec, como são chamados – parecem sereias. Já os leshys, que em The Witcher bem caberiam em qualquer game de terror, mais se parecem com os ents em O Senhor dos Anéis.
Veles, Zorya, Svarog e Perun, os nomes das runas que Geralt grava em suas espadas, por sua vez, aparecem aqui como o que realmente são: deuses do panteão eslavo.
O fim da magia e a era dos homens
Por mais exótico que seja seu mundo, a premissa de Thea está longe de ser única. Pelo contrário, os dramas de uma humanidade vivendo em um mundo desmistificado são alguns dos elementos mais antigos e cativantes da fantasia.
Mesmo no universo dos games esses cenários já contam com uma tradição. The Banner Saga, uma criação de ex-membros da Bioware, toca no mesmíssimo ponto, desta vez em um mundo inspirado na mitologia nórdica. Nele, nós acompanhamos o drama de migrantes tentando sobreviver em um mundo hostil, congelado e abandonado pelos deuses.
Tal como Thea, The Banner Saga é um misto de estratégia e RPG. Tal como Thea, sua história melancólica lida não com vitória, conquistas ou finais felizes, mas com a sobrevivência em uma sociedade em ruínas.
Suas personagens estão em crise não só porque temem pelas suas vidas, mas porque o mundo que conhecem está desaparecendo. E elas não fazem ideia do que as aguarda do outro lado.
Mesmo The Witcher, a despeito de seu foco pessoal, se passa em um mundo com data para acabar. Os witchers são uma casta em extinção; suas fortalezas estão destruídas e suas guildas não treinam mais guerreiros.
Os witchers pertencem a um outro universo, em que as pessoas viviam cercadas pelo desconhecido e temiam os monstros que espreitavam em seu meio. Mas a humanidade venceu: as cidades estão crescendo, os monstros estão acabando e os witchers perderam a sua função.
Os “monstros” do presente não são leshens, drowners ou chorts, mas estadistas, burocratas, soldados. Eles não matam com garras e dentes, mas com decretos e protocolos.
Para o fã do gênero, não há nada de novo sob o sol. Afinal de contas, histórias similares estão presentes na obra de ninguém menos que J.R.R. Tolkien. A saga de um mundo em decadência, em que a magia desaparece para dar origem a uma nova “era dos homens” é um dos temas centrais na obra do pai da fantasia.
E não por acaso. Tolkien foi forçado a lutar na Primeira Guerra Mundial e participou da Batalha do Somme, um dos embates mais sangrentos da história. Tal como outros que vivenciaram o conflito, ele não conseguia afastar a ideia de que algo havia dado terrivelmente errado com a humanidade.
Ele não foi o único. O criador de Nárnia C.S. Lewis e quase todos os Inklings – um grupo de intelectuais do qual os dois participavam – passaram por experiências semelhantes.
Hoje em dia, pode parecer estranho que elfos e orcs tenham sido escolhidos para lidar com os traumas do presente. Todavia, para eles – e tantos outros que vieram depois – conceber um universo paralelo foi a melhor saída para encarar o mundo real.
Ainda mais quando seu “mundo real” já não parecia mais o mesmo.
A imagem do mundo
Nos anos 1930, o filósofo Martin Heidegger disse que a era moderna mudou a forma como o ser humano enxergava o mundo. Antes, a humanidade era vista como parte de uma criação. As pessoas eram peças dentro de uma ordem, e suas vidas tinham um sentido que não dependia delas. Outras forças – os deuses, a natureza, um poder superior – eram as donas da verdade e da mudança.
Com a modernidade, tudo mudou. O ser humano, de objeto, tornou-se protagonista. O mundo passou a ser visto como algo a ser domado, conhecido, transformado. A vida deixou de ter um “sentido” profundo além daquele que cada um de nós dá a ela. A arte se tornou subjetiva, uma expressão da experiência de cada um. Os deuses morreram. O mundo virou uma imagem, desenhada pelos humanos.
A impressão, que só se tornou mais forte com o passar dos séculos, era a de que tudo era possível. Sem os desmandos de uma inteligência superior, estávamos autorizados a viver da forma que queríamos. Nada era impossível, pois tudo dependia de nós. A realidade virou uma construção – e, como toda construção, podia ser derrubada e reconstruída caso o resultado não nos agradasse.
Essa liberação foi agradável, mas teve o seu preço. Se tudo depende de nós, então só podemos culpar a nós mesmos quando as coisas dão errado. Se não existe um sentido para a vida, viver se torna um passatempo inútil, uma longa espera entre o nascimento e a morte. Se tudo o que fazemos “dá na mesma”, não há razão para cada um não criar o inferno na terra.
Como pergunta Alette, personagem de The Banner Saga, se até os deuses estão mortos, por que nós precisamos continuar vivos?
Porque nós escolhemos viver
Tudo isso depende, claro, de estarmos certos sobre as coisas. Mas e se nós estivéssemos errados?
E se nosso controle sobre o mundo não fosse lá tão completo? E se, por mais que insistíssemos em ser donos do nosso próprio destino, nós ainda lutássemos contra o acaso, forças superiores, a natureza humana?
Quem pergunta é Yarpen Zigrin, amigo de Geralt de Rivia. No último livro da série The Witcher, ele nos diz:
“O progresso … irá iluminar a escuridão, pois é isso que o progresso faz … Cada vez mais haverá mais luz, e nós teremos cada vez menos medo do escuro e do mal que espreita nele. Talvez o dia chegará em que nós simplesmente pararemos de acreditar que alguma coisa está escondida na escuridão e nós daremos risada desse tipo de medo. Ele parecerá infantil, e nos trará vergonha! Mas sempre, sempre haverá escuridão. E o mal sempre estará esperando na escuridão com suas garras, presas e sangue. E os witchers sempre serão necessários.”
Thea é um jogo curioso, pois coloca a escolha nas nossas mãos. Em sua missão para restaurar o poder dos antigos deuses, o jogador é visitado por um velho misterioso. Segundo ele, talvez seja melhor deixá-los morrer.
O ser humano – ele nos conta – não precisa de divindades, de magia e de criaturas fantásticas. Ele é inteligente, e pode criar suas próprias soluções. O que para os deuses é a escuridão, para nós pode ser a luz de uma nova era.
Viver submisso à certeza do passado, ou arriscar tudo construindo um futuro? É uma escolha difícil. Uma escolha, talvez, que todos nós tomamos em algum momento das nossas vidas. Por essa e por outras a fantasia é um gênero tão atemporal.
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