Fallout 4 já vendeu mais de 12 milhões de unidades e está no caminho de se tornar um dos títulos mais populares da geração. Nem todo o sucesso, no entanto, o salvou dos desafetos. Na linha de Mass Effect 3, Dragon Age II, Diablo III e tantos outros no passado, o game foi alvo de uma review-bombing no Metacritic, com mais de 700 avaliações negativas – várias com nota 0.
As críticas são várias, mas apresentam um denominador comum. Usuários se queixam do crescente distanciamento da série daquilo que a tornava especial. Aqui e acolá, a acusação aparece com todas as letras: Fallout estaria deixando de ser um RPG para se tornar um FPS. Narrativas ramificantes, diálogos complexos e sistemas de promoções criativas teriam sido substituídos por tiroteios acelerados.
A “perda da pureza” é uma alegação comum nos games, e nem sempre despropositada. De todas as séries, poucas têm uma história tão antiga com esse problema quanto Fallout. Originalmente um dos maiores expoentes da “era de ouro” dos RPGs isométricos, a franquia foi revitalizada pela Bethesda em 2008 como um game em tempo real e primeira pessoa, nos moldes de The Elder Scrolls.
É difícil imaginar dois estilos de jogos mais incompatíveis. Contudo, a aposta funcionou, em parte pelo sucesso da Bethesda em apresentar um dos maiores clássicos dos games a uma nova geração de fãs, em parte por New Vegas, que trouxe de volta a equipe dos Fallouts 1 e 2 com as liberdades da nova engine.
O embate muito provavelmente está não nos jogos ou nos fãs, mas no vocabulário vago ao qual nos acostumamos. Se um rótulo como “RPG” se aplica a coisas tão diferentes uma da outra, por que continuamos a utilizá-lo?
Gêneros de videogame: auxílio ou confusão?
Gêneros de entretenimento são categorias estranhas. Todos sabemos, intuitivamente, o que as coisas que gostamos são, mas dificilmente somos capazes de descrevê-las. Se o que marca um RPG são sistemas de level-up e potencial de customização, seria Borderlands 2 mais RPG do que Fallout 4? E Mass Effect 2, que destilou talentos, atributos e perícias ao mínimo necessário, mas entregou um dos enredos mais impactantes de sua geração? Não seria isso, também, a marca de um grande RPG?
E quando jogos deliberadamente misturam gêneros? Como descrever Battlestations: Pacific, que permite que o jogador alterne entre estratégia em tempo real e simulador de vôo em uma mesma batalha? E Dark Cloud, misto de JRPG com construção de cidades?
E Zelda: Ocarina do Tempo? Seria ele uma “ação-aventura” open world, tal como as sandboxes da nossa época? Por que não “quebra-cabeça”, já que seus dungeons são basicamente combinações de blocos a serem empurrados, e seus bosses são derrotados com a repetição de sequências memorizadas?
A confusão é tamanha que muitos já sugeriram largar a divisão por gênero como um todo. Essa é uma visão comum entre críticos e desenvolvedores independentes, que acham que categorias muito marcadas reduzem as possiblidades criativas e incentivam a produção de mesmices.
Gamers, no entanto, pensam diferentes. Por mais que uma parcela dos consumidores curta a experimentação, uma pesquisa publicada esse ano constatou que 74% dos compradores considera a informação sobre gênero útil na hora de adquirir um jogo novo.
Do lado dos criadores, interagir com seus pares também é importante para que seu trabalho seja notado. Num momento de saturação de mercado e intensa competição por espaço entre games indies, garantir que seu jogo chegue àqueles que podem gostar dele é um imperativo. Se isso significa fazer malabarismos com uma terminologia vaga, então este é um sacrifício que os desenvolvedores terão de suportar.
Como resolver esse problema? Não existe uma resposta milagrosa. Felizmente, este não é um problema recente, e o passar dos anos nos trouxe saídas promissoras.
1- Expandir as categorias
Um ponto que os críticos dos gêneros sempre fazem é que os motivos que levam pessoas a curtir um dado jogo são diferentes. Alguns buscam mecânicas que lhes sejam familiares. Outros vão atrás de cenários ou temas (fantasia, steampunk, cyberpunk, Segunda Guerra Mundial). Outros querem algum apelo emocional específico (adrenalina, medo, tristeza). Outros ainda têm preocupações bem mais pragmáticas (isso é jogável sem um controle?).
Para tal, seria útil dividir os “grandes gêneros” em vários eixos. Esta é a solução do Moby Games, um banco de dados de videogames na internet. Nele, “gênero” é definido por gameplay, mas jogos são ainda classificados por duas outras categorias: perspectiva e tema.
Quer um jogo com mecânicas de RPG, mas detesta games em primeira pessoa? Busque por títulos com perspectiva isométrica. Não suporta mais games de tiro ambientados na era contemporânea? Entre na categoria FPS e selecione algo mais exótico no campo “tema”.
O resultado foi um imenso glossário com explicações detalhadas sobre todas as subcategorias. Se não for o suficiente, o site também dá uma explicação histórica contando a evolução do gênero ao longo das décadas.
Até que ponto suas definições vão agradar fãs hardcore são outros quinhentos. Algumas escolhas parecem bastante pertinentes. RPGs, por exemplo, são definidos como descendentes dos RPGs de mesa cujo foco é o desenvolvimento de personagens.
Já outras são de coçar a cabeça. Visual Novel e vôo aparecem como “tema”, não “gênero”, muito embora várias pessoas os associem a tipos específicos de gameplay. Limitações à parte, é difícil encontrar um compêndio mais detalhado fora de uma tese acadêmica.
2 – Deixar a escolha nas mãos dos jogadores
Essa é a solução poliana da web 2.0. Críticos, acadêmicos e desenvolvedores conhecem muito da mídia, mas seus objetivos são bem diferentes daqueles dos consumidores. Se a intenção é atender demandas, porque não dar a voz para quem compra os jogos?
Uma funcionalidade do tipo está presente no Steam. A vantagem é que, no espírito das subdivisões do Moby Games, suas tags são extremamente versáteis, indo do “fofo” ao “crowdfunded”.
A desvantagem é que, como todo sistema de feedback aberto, classificação populares são vulneráveis às trollagens. O próprio steam teve de criar um sistema de controle após usuários criarem tags como “lixo” ou “não é um jogo”.
Para quem usa a internet há algum tempo, não há nada de novo sob o sol. Para a Amazon.com, trollagens de produtos tornaram-se tão populares que se transformaram em um ritual da web. A Mountain Dew já foi forçada a cancelar um concurso para eleger o nome de seu próximo sabor após “Hitler não fez nada de errado” liderar as votações. Num caso menos malicioso, Street Cleaner Simulator tornou-se um dos jogos mais celebrados de todos os tempos.
3 – Adotar nomenclaturas bottom-up
Uma alternativa para a anarquia digital do item acima é procurar categorias criadas no discurso informal e disseminadas pelo uso recorrente. Tal como as línguas se modificam e incorporam neologismos, também o vocabulário dos games muda ao longo do tempo. Se é verdade que categorias tradicionais como RPG, FPS e estratégia continuam sendo úteis, nada impede que novos termos entrem em cena para enriquecer o debate.
Um caso notável são os gêneros baseados em jogos – o que um publicitário talvez chamasse de “fenômeno Yakult”. Graças à bolha indie no PC, muitos gamers são familiares com o termo roguelike, aventuras cujos níveis são gerados proceduralmente e a morte é permanente. O que menos gente sabe é que o gênero é baseado no game Rogue, lançado originalmente em 1980.
O neologismo fez tanto sucesso que uma conferência internacional de criadores de roguelikes passou a ser organizada anualmente. O novo “gênero” consagrou-se a tal ponto que o variante rogue-lite começou a ser empregado para games que adotam apenas algumas das características de seu “pai fundador”.
Casos similares são os metroidvanias (side-scrollers baseados em Metroid e Castlevania para o NES) e o próprio JRPG. Num processo similar à popularização do anime fora do Japão, o que começou como um jargão ocidental transformou-se em um estilo que hoje já conta com exemplos americanos e europeus.
4- Conferir se o problema não está em outro lugar.
E se o problema dos gêneros não estiver exatamente nos gêneros?
A pergunta vem de pesquisadores que não se conformaram com a teimosia do público. Ideias impopulares costumam ser descartadas ou aprimoradas com o tempo. Se o mesmo não aconteceu com o vocabulário dos games, é porque o incômodo está em outro lugar.
Eu já falei em outro artigo que as disputas entre “casuais” e “hardcore” geralmente só ocorrem quando um dos grupos se sente impedido de curtir seu entretenimento da forma que mais aprecia. Se pararmos para analisar as flamewars de Fallout 4, o que salta aos olhos não é um purismo de nomenclatura. Antes, é a sensação que um tipo de experiência deixou de existir para dar lugar a outro.
Há um temor de que protagonistas dublados impliquem em uma redução das opções de diálogo, que o combate em tempo real atrofie sistemas de talentos e perícias, que a ênfase em elementos cinemáticos exija a redução de ambientes, que o fato de que a maioria das pessoas não termina os jogos leve a histórias secundárias ou mal desenvolvidas.
Por mais que esteja curtindo Fallout 4, não posso deixar de concordar que esse é o caminho que a esfera AAA tomou. Há escolhas a serem feitas. E, tal como as decisões que tomávamos nos RPGs das antigas, elas podem exigir que um mundo seja destruído para poder ser salvo.
A Bethesda não foi a única a perceber isso. David Gaider, escritor-chefe de Dragon Age, chegou à mesma conclusão quando do lançamento do segundo jogo da série. Para o fã hardcore, infelizmente, isto significa pular da frigideira para a fogueira.
Entretanto, por mais que eu simpatize com a angústia, também não consigo levar o alarde a ferro e fogo. Graças ao sucesso do crowdfunding, vários dos grandes talentos da indústria migraram para canais independentes. Entre eles está a nata da “era de ouro” dos RPGs isométricos, como Chris Avellone e Brian Fargo.
Se há alguns anos só podíamos sentar e chorar quando nossa franquia do coração era desmembrada ao mudar de direção, hoje temos refúgios. Saudosos de Fallout podem experimentar Wasteland 2, sequência do game de 1988 que serviu de inspiração à franquia. Quem não se incomoda com um toque cyberpunk em seu pós-apocalipse também curtirá os novos Shadowrun (Returns, Dragonfall, Hong Kong). A série é baseada em um premiado cenário de RPGs de mesa, mais conhecido por sua clássica adaptação ao SNES
Nós estamos chegando em um momento em que quase qualquer estilo de jogo pode ser feito. De todas as liberdades que isso nos dá, a maior é saber que podemos finalmente soltar o cabo-de-guerra e deixar a indústria AAA seguir seu caminho. Graças à renascença dos RPGs (e de tantos outros gêneros), nós agora temos uma alternativa.
Comentários
Pingback: ‘Darkest Dungeon’ e a importância dos roguelites para os games – finisgeekis