Dependendo da sua opinião sobre o último episódio de Charlotte, o que você deve estar sentindo pode não ser exatamente ‘medo’, mas alegria, raiva, ódio, confusão, deslumbre ou algum sentimento tão indescritível quanto os enredos do roteirista.
Para quem está por fora, cai bem uma introdução. Jun Maeda é um dos grandes talentos do anime contemporâneo. O roteirista, pioneiro de visual novels, é co-fundador do estúdio Key e assinou vários jogos posteriormente adaptados ao anime, como Air, Clannad, Kanon e Little Busters! Mais recentemente, ele tem se dedicado a produções exclusivas para a telinha e adquiriu grande sucesso com os hits Angel Beats! e Charlotte.
Se não fosse o suficiente, ele também é músico e compositor e assinou uma série de canções de anime, tanto para obras suas quanto para outras séries.
Não há dúvida de que Maeda tem um dom para aquilo que faz. A questão está em suas escolhas. Charlotte, seu novo (e superantecipado) projeto, foi concluído recentemente, deixando uma legião de fãs com o queixo caído. A trama é recheada de twists (para alguns, nem sempre bem-vindos) e aterrissou com um episódio final que já começa a causar estardalhaços na internet.
Se Charlotte é a maior obra-prima de todos os tempos ou uma série medíocre e incoerente é um julgamento que deixo a cargo do leitor. De minha parte, tentarei explicar o que acho que aconteceu e o que isso nos diz sobre o mundo do anime.
Se você já viu Charlotte ou não se importa com spoilers, pode seguir lendo abaixo, onde farei um breve recap e comentário da série. Se, por outro lado, você ainda pretende vê-la e não quer se surpreender, pule para a terceira parte desse texto.
O enigma de Charlotte
À primeira vista, Charlotte parece uma versão leve e bem-humorada de X-Men – ou para ficar no mundo do anime, Darker Than Black.
Yuu Otosaka, um adolescente comum, certo dia descobre que tem um poder muito curioso: pode controlar a mente de qualquer pessoas, mas apenas por 15 segundos.
Após alguns desencontros, ele descobre que não está sozinho e acaba integrando uma academia para jovens com dons similares – e igualmente específicos. Uma garota que consegue ficar invisível para uma única pessoa por vez. Um médium que precisa estar encharcado para localizar seus alvos. Um rapaz que corre na velocidade do som, mas é incapaz de frear. Com o humor nonsense que viemos a esperar de Maeda, o resultado é uma fábula cômica de super heróis defeituosos passando por sua puberdade – e, é claro, música.
https://www.youtube.com/watch?v=8sa1BSx5w-w
Isso, obviamente, à primeira vista. De uma hora para outra, a série nos chuta no estômago com uma visão de futuro apocalíptico, um viajante no tempo à la Madoka, um complô de terroristas internacionais, mortes trágicas e cenas de tortura. A escola bucólica de Little Busters! dá lugar a uma versão moe de Arma X, e Otosaka e seus amigos lutam para se esconder de cientistas sádicos que querem usá-los como cobaias humanas.
Eventualmente, Otosaka descobre que seu verdadeiro poder consiste em roubar os poderes dos outros, o que o torna o mais versátil e perigoso dos “mutantes.” No último episódio, convencido a acabar com o mal pela raiz, ele assume sua Feiticeira Escarlate interior e decide rodar o mundo roubando os poderes de todos os mutantes e devolvendo-lhes uma vida normal.
Naquele que foi talvez o clímax mais rápido do oeste, nosso protagonista viaja a todos os países do globo, adquire habilidades que comprometem sua sanidade mental, luta contra os impulsos de usar seu poder para conquistar o mundo, completa sua missão, é baleado, deixado para morrer, resgatado e hospitalizado, perde todas as suas memórias, reencontra sua crush do colégio, começa a namorar e vive feliz para sempre. Tudo em 25 minutos.
Logo de cara, é possível dizer que a visão de Maeda não se adaptou aos 13 episódios que a emissora lhe deu. Sua história poderia (e, muito provavelmente, deveria) ter sido estendida por pelo menos mais uma temporada. Como críticos já notaram, mais coisas acontecem no último episódio do que nos demais 12 combinados.
Todavia, acredito que a raiz da discórdia esteja mais além. Se o trabalho de Maeda às vezes nos parece um enigma, é por que ele mexe com os fundamentos mais essenciais do anime.
O nonsense e seus limites
Há duas explicações sobre a sensação estranha que Charlotte nos passa que me parecerem bem convincentes.
A primeira é de Hope Chapman, escrevendo para o Anime News Network. Em sua retrospectiva de Maeda, a colunista notou que o roteirista mostra sua melhor forma com enredos fantásticos, com recurso ao místico e a milagres inexplicados. Criar mundos loucos, que parecem funcionar desafiando qualquer lógica, permitiu a Maeda chegar na fórmula que viria a se tornar sua marca registrada: a mistura de melodrama, humor absurdo, ação e, lógico, muita música.
A questão, para Chapman, é que o roteirista parece estar migrando para histórias mais pés-no-chão. Charlotte estaria na crista da onda, substituindo o misticismo vago de seus trabalhos anteriores por uma trama de conspiração com elementos de ficção científica.
Isso se torna um problema quando as exigências desses outros gêneros não são atendidas. Quando mais um anime se apoiar em explicações “racionais” para as coisas que acontecem nele, mais essas explicações precisarão ser consistentes. Não basta mais apelar à vontade de Deus ou a algum karma universal. Se há uma conspiração terrorista, é preciso que ela tenha uma origem, motivos e modus operandi. Se há efeitos colaterais para poderes super humanos, eles devem ser explicados desde o princípio, não tirados da cartola. Se há uma moral para a história, ela precisa fazer sentido.
Para os críticos de Charlotte, a série pecou nesse quesito. Seus twists, mudanças temáticas e resumos panorâmicos passaram a impressão de um plano inacabado. Em contrapartida, quem relevou a “lore” em favor de seus elementos mais básicos parece ter tido uma impressão muito melhor.
A visão de mundo de Jun Maeda
A segunda explicação vem da obra de Eiji Otsuka, criador de Delivery Service of Corpse e MPD Psycho. Além de mangaká, Otsuka é antropólogo e especialista em cultura otaku e escreveu vários livros sobre o tema.
Em especial, Otsuka dedicou muita tinta para entender o que faz fãs de anime curtirem as histórias que curtem. Para ele, o que está em jogo não é o roteiro, a qualidade dos episódios ou o carisma das personagens. Antes, o X da questão estaria no plano geral, o que ele chamou de “visão de mundo”.
A visão de mundo inclui todos os elementos “de fundo” que acompanham a série: o gênero, a época em que se passa, a idade das personagens, a existência ou não de conflito, o tom mais cômico ou mais sério, etc. O princípio não é novo. Segundo Otsuka, a relação dos otakus com suas séries favoritas não é muito diferente da relação dos espectadores com o Bunraku, o antigo teatro de bonecos japonês.
Peças de Bunraku sempre tinham um “mundo” comum que informava à plateia o que esperar. O “mundo” informava desde as decisões sobre o tipo de enredo a coisas específicas, como os nomes e personalidades das personagens. Era o “mundo”, no final das contas, aquilo que atraía as pessoas. Neste contexto, o objetivo de um autor não era criar uma história do zero, mas fazer uma variação original sobre um tema conhecido.
Para Otsuka, com o anime é a mesma coisa. O que nós chamamos de Mahou Shoujo, Slice of Life, Girls with Guns, Harem não são apenas gêneros, mas “visões de mundo” bem estabelecidas. A consequência são elementos comuns, previsíveis, que se repetem em todas as séries: a sequência de transformação das guerreiras mágicas, os diálogos intermináveis entre oponentes em animes de luta, os esforços das colegiais pra chamar a atenção do senpai, etc. Estes não são apenas clichés, mas aquilo que dá identidade a uma produção, e é a partir deles que a maioria dos otakus escolhe quais séries assistir. Não importa quem seja a garota mágica, o importante é que venda um bom “mundo” de Mahou Shoujo. Não importa qual adolescente pilotará o mecha, o crucial é que o “mundo” de mecha seja convincente. Quando esses detalhes somem, o espectador perde o chão.
Em seu amadurecimento como artista, Jun Maeda parece ter chegado a uma “visão” muito própria. Ela inclui o “mundo” do melodrama japonês, no estilo de Ano Hana e Shigatsu Wa Kimi no Uso, o “mundo’ dos animes de bandas, o “mundo” do humor nonsense e, claro, o “mundo” das visual novels, onde sua carreira começou.
Sua ousadia em misturar elementos tão diferentes é o que faz alguns criticarem seus trabalhos como porcarias incoerentes e outros dizerem que amam o que assistem, embora não saibam por quê.
De qualquer maneira, o que mais chama a atenção é que Maeda não abandonou os elementos comuns. Em seus últimos animes, as personagens centrais cumprem as mesmas funções, como se fossem atores distintos interpretando papeis similares. Há a cantora moe de temperamento açucarado, a cantora badass de voz grossa e jeito rebelde, o escape cômico com músculos bem definidos, o “salvador” que provoca um glitch na profecia, a líder pavio-curto da irmandade de alunos. E por aí vai.
Mesmo o enredo parece seguir padrões conhecidos. Muitos reviewers comentarem do “twist Madoka” que Charlotte apronta em dado momento. O que eles ainda não pensaram é que é possível estarmos diante de um “Twist Madoka” em letras maiúsculas, uma convenção que logo se tornará tão comum quanto a morte trágica do mentor, o beijo romântico na ponte e os “acidentes” dos animes ecchi. A variação se tornou um novo tema.
Se isso, por si só, não for prova do dinamismo dessa nova geração de roteiristas, eu não sei o que seria.
quero mais episodio de charlotte sou super fã assistir a tempodara ja dez vese